16 de dezembro de 2010

sobre o passado dizem apenas: passou

Vivem esperando os sinais. Se não de Deus para o futuro, anúncios e recados de meninos ausentes, moças doentes de amor, esquecidos vales negros por onde entraram as mãos e os membros. Porque as bocetas não mandam recados? Mandam recados as nuances, as tolas apaixonadas, as esquecidas bonequinhas de outrora . Todos sentem o ressoar dos sinos dos mortos voltando ao presente. Ah, os mortos... e nós, para quantos já morremos, se os outros morrem a todo instante?

Às vezes é possível sentir os cheiros mal resolvidos, mas ninguém comenta
os velhos apegos desesperados, mas ninguém divide a ardência (só com a noite)
o rasgar-se todo etc
passam de raspão colados a pele
os lapsos de recordação e desordem quando anunciam presença
ou quando anuncia apenas a memória, sem concretude no outro – ah, demência!
mas calam-se,
sobre o passado dizem apenas: passou
e colocam mais outras xícaras de um novo café
quando amanhece

30 de novembro de 2010

cem rumos

as pessoas do mal vêm
as pessoas do bem vão
o fluxo das cidades não para
as pessoas do mal vão
as pessoas do bem não param
o fluxo da cidade vem
o fluxo da cidade vai
as pessoas do mal não param
as pessoas do bem vão
as pessoas são as mesmas, vão e vêm
o fluxo das cidades não tem rumo
sem rumos
cem rumos de senhoras
rumores de antigas vizinhanças
nada mais resta a não ser o sanguinário vício
o pai doente indo embora
o padeiro que engordou desde a última
a amiga do cunhado que sempre tivemos um certo tipo de
vontade
as pessoas falam demais, tricoteiras e mesquinhas
outras falam de menos, as mais observadoras
e calmas, nem boas nem más, boas e más
é preciso calma para manter-se em silêncio
não me mantenho
vou
o fluxo da cidade também vai
o fluxo da cidade não para
as pessoas param em instantes, descansam
o fluxo da cidade vai
o fluxo da cidade vem
o fluxo da cidade não para

28 de outubro de 2010

Impulsos circulares de um obcecado

            Estava triste, tristinho, tal qual Zeca Baleiro em Telegrama, mas nada recebeu que o deixasse feliz com um outro alguém a pensar em sua barba mal feita ou suas unhas roídas. Poderia, mas não: nem telegrama, nem telefonema. Talvez um pensamento? Mas não entendia isso de telepatia, embora fosse dotado de muitos outros conhecimentos. Talvez desnecessários, confessava. Filosofia barata, astrologia, culinária- o que evitava ao máximo para que a esposa não se acomodasse-, funcionamento de aeronaves, evolução das espécies aquáticas, artesanato. Disfarçava, inibido, os outros dotes aléns. Que descobrissem sozinhos, dizia. Poucos descobriam.
            Estava quieto esse dia. Via-se pela falta de ruídos de ônibus - devia ser domingo. Estava quieto nesse dia. Via-se pelo olhar que parara de perambular como nos outros dias. Como se fosse normal, pousava sobre pessoas enquanto essas mesmas gesticulavam com outras em praças enquanto iam aos destinos desejados. Estava quieto e só, sentado em uma cadeira de madeira. Nem era tão mal o restaurante, tampouco a praça que escolhera dentre tantas, tampouco a comida. Devia era ficar feliz. Amém, Senhor, por poder comer esse prato de comida num lugar agradável, sobretudo com ar condicionado e garçons dispostos com sorrisos estampados. Não importa que sejam sorrisos de plásticos, estão aqui a servir-me e além do mais gosto de sorrisos. Sorrisos intrigam.
            Era assim: esquecia-se com pequenas distrações: os garçons dos restaurantes onde almoçava – cada dia em um porto e corpo; a mulher e os filhos quando voltava.  Posto que não importava mais o que viesse, deixava seguir sem se lamentar, apenas lembrando do que ocorrera e do que poderia ocorrer. Seguia com leves esforços ao longo de tudo. Devia deixar quieto, como a consciência dizia, mas esforçava-se um pouco pois sempre fora determinado.
            Não era esperança, sabia que no fundo nada daria certo de fato. Nem queria. Beijos melados nos olhos, conversas sobre a humanidade, a fluidez dos dias, os abraços de apertões confusos sempre recriminados. Não, era claro que não queria isso. Não queria que desse certo como dão certas as histórias que ouvimos de rapazes e moças. Afinal, já tinha ele dado certo e ela também. Louco que era, o que tentava esconder de quase todos, queria era esmagá-la contra a parede, seja para beijos, apertos, entendimentos, qualquer intensa presença dentro, ao redor, nos olhos, em todos os lábios. Não era esperança porque esperança é menino esperando o vagão do trem. Lembranças da primeira namorada por correspondência que nunca veio. Não era nada disso agora. Agora não há fantasias, dizia ao ninguém depois dos tantos goles e apertos por debaixo da mesa. Não há fantasia.
            Quer dizer, há. Tudo é fantasioso e ilusório, mas o real sobrepõe os inventos tornando-os ainda mais fortes, sabe? Garçon, traz mais uma para brindar o lamento. Espero como esperam os budas, como esperam as donzelas, como esperam os desesperados sexuais. É gozo de alma e de corpo: um dia explico. Como Buda, espero. Que venha a menina hermosa numa tarde disponível de qualquer lugar, troca de vidas, esquecimentos e entrega. Já se passaram quatrocentos e sessenta mil horas. Hoje vou cozinhar um belo jantar quando chegar em casa.

23 de outubro de 2010

A Visita Esperada

Para o Caio F




Peguei o taxi após descer o viaduto. O coração era bomba desligada. Explico: ainda não havia sido programada para explodir, como essas que vemos em filmes de ação. Quieta e poderosa em seu silêncio ameaçador, palpitava em segredo. Mesmo assim, o coração era ainda uma bomba de dar medo em sua quietude – nunca se sabe dos fios que ligam e desligam as possibilidades de destroços. Preferi me medicar para não entrar em desespero.
Antes de pegar o taxi e antes mesmo de descer o viaduto, ainda no hotel onde estou hospedada, me maquiei, troquei umas duas ou três vezes de roupa e me perfumei tanto que na ansiedade (e é na falta de propriedade para nomear o sentimento que assim o denomino) o vidro vermelho francês caiu enloquecendo o ambiente com suas damas da noite no início da manhã. Voltei a esse ponto da história para que prestem atenção aos sinais: era manhã, eu havia acabado de acender o incenso de almíscar e logo que comecei os preparativos para a visita, já havia cheiro de dama da noite por todos os lados.
Peguei o taxi. Vou pro Menino Deus, me disseram que podemos ir pela Getúlio Vargas. Sim, senhora. É perto do Guaíba, não é? Sim, mas depende de que parte do Guaíba tu queres ficar. Não não só pra saber.  
Não estava tão frio como eu gostaria, mas o céu era cinza. Observei um pouco o caminho e, como nunca faço, puxei papo com o motorista:
- Vou visitar um grande amigo.
- Bá, tri bom. Faz tempo que vocês se conhecem?
-Pessoalmente nunca, mas de empatia faz uns cinco...
- Cinco o quê
?
- Cinco anos.
- E como é isso?
- Ah. (…) A ge
nte não precisa olhar nos olhos para sabermos que algumas pessoas existem e dividem o existir conosco.
- Filosofia... mas acredito, existe de tudo.
Viramos a esquerda. Vi um caminho quase que colonial feito de palmeiras. As casas eram bem conservadas e bonitas. Pensei que deveria ser bom morar ali onde Deus ainda é menino, mesmo que eu diga ainda que Deus sabe-se-lá-se.
- Está feliz, então, conhecendo o amigo há tanto tempo e só agora... ?
- Tô. Tô sim. No momento tenho medo de explodir, mas esta tudo sob controle. A felicidade segura o descontrole das emoções.

          Três ou quatro perguntas sobre política que respondi no automático porque não estava nem aí para política, partido, relação alguma. Apenas dividi que ia visitar um amigo. Em dez minutos chegamos.
Não existiu tempo.
          Estou na rua Oscar Bitencourt em setenta e cinco. Ainda não nasci, mas venho projetada do futuro para encontrar-te, amigo, e ao menos enquanto ainda estás aqui, abraçar um pouco teu corpo magro e dizer-te palavras bontas. Sei que conheces bem também. Tomaremos um café que eu mesma irei passar. Trouxe bolinhos de chuva, dois maços de cigarros, vinho e camisinhas, que era o que não poderias ter deixado de usar desde sessenta e cinco, menino bonito rebelde. Não digo por gravidezes inesperadas pois disso cuidastes ou cuidastes alguém por ti, a força da atração, coisas, coisas que cuidaram para que não deixasse nada além do que brotou com consciência. Menino único.   
          Toco a campainha. Há dentro de mim uma vaga certeza de que a casa está vazia. Pássaros cantam, o que é absolutamente normal. Flores dançam, excêntricas com a maestria do vento, o que são pequenos presentes divinos de um céu que nem azul é. O blues não chegou por aqui de manhã. Onde estásToco novamente a campainha. Deve estar passeando pelas ruas do centro com seus brincos e lenços. Vim de tão longe, amigo... queria eu que chegasses aqui do nada e me abraçasses pelas costas. Era mesmo para ter acontecido desencontros, desenganos, desamores.
          Venta bastante agora em dois mil e dez. Ele chegou. Não abriu as portas da casa porque já não pode. Não que esteja velho e incapaz de mover-se, mas sua casa não é mais sua, me conta. Está a venda. Me pede com som, cheiro e toque na pele para que eu a compre, assim poderemos tomar os cafés – garante que será possível as duas xícaras na mesa da varandinha do andar de cima, como imaginei. O chamo de bruxo por ler meus pensamentos descaradamente. Ele sorri e insiste que eu compre o sobrado. Não tenho dinheiro, eu digo, e aos poucos vou ficando triste. Não posso comprá-la, não posso comprá-la... Ele pede que eu anote o telefone da imobiliária.
          - Não tenho esse dinheiro, insisto.
          -Alugue-a. Passe aqui uma, duas semanas comigo.
Meu amigo está morto e mudarei meu nome se eu morrer também sem tomar os cafés no frio interior do sobrado como prometemos.


          - Ouvindo Bethânia para sofrermos em beleza, disse.





          - Uma semana?, perguntei. Vou ligar para a imobiliária.





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Meu obrigada a Andrea, do Andrea TPM, que ajudou na realização de um desejo antigo e a @ClarahAverbuck que indicou a @amandacosmos que também sabia o endereço da antiga casa do Caio.



18 de outubro de 2010

Mulheres e a lua

Explode teus lamúrios
todos em cima de mim
Não sou mais que um corpo agora
Escondo as dores e os lamentos
por três horas a noite,
pelos nossos momentos
Explode tuas dúvidas todas
Cospe em cima de quem amas
degluto, degusto, separo células
Te entrego a flor da tristeza
reformulada em beleza
não pranto, confusão, confissão
Transformo em beleza rara,
em calmaria, em alento

Tenho monstros, sei que sabes
quem não os tem?
os demônios rondam até mesmo os bons
expurga-me os demônios!

Não
Assenta-te o semblante
Acalma-te sobretudo o pensamento
Despejas apenas o que corrói
depois tudo é clareza, entendimento
Disfarças o que sentes quando tremo
quando tremes
Passam
como passam nossas dores de cabeça

12 de outubro de 2010

Poderia cantar e me mexer loucamente e ainda assim estaria orientada mesmo que no meio da Praça XV, da Quinta Avenida, em frente ao Museu do Louvre. Poderia começar com just let me hear another rock and roll music fazendo passos leves e passos bruscos enquanto aterrorizados os locais olhariam sem entender. De olhos fechados, por quase 10 minutos ou quanto durasse a alegria, eu poderia dançar e cantar e desligar-me do mundo porque em mim encontro não só o que existo mas o que existe de mim em outro.
Poderia sair correndo em disparado quando em meio a uma segunda-feira tediosa às 12h em ponto começasse a chover pesado em algum centro urbano desses intransitáveis. Os passantes quase putos mas protegidos com seus guarda-chuvas e eu descontrolada correndo apenas para ter a sensação de que chove mais e de que mereço. Porque, em algum lugar, existe quem sente.
Poderia sair do trabalho às 21h como em todos os dias e como em nenhum outro dia tirar a blusa e andar sem sutiãs pelas ruas. Estou nua mesmo. Estou nua porque compreendo, estou livre sem máscara sem dor sem mágoa sem ódio sem glorificações excessivas e adorações infundadas. Sairia do trabalho, pegaria o ônibus e a cada sacolejar de banco e de dor nos seios, saberia que consegui e que meu existir em outro se propaga e permanece.
Poderia todos os escândalos
Poderia todos os silêncios
Poderia todas as provas
Poderia todos os furos e vergonhas
Porque sei que, em algum lugar, existe quem sente.

6 de outubro de 2010

Dedilhando a aura

Entre o suor e a pele
não sendo simplesmente corpo
(o que é extraordinário
quase além-humano: deusa - com a sabedoria dos que sabem)
jorra a ternura nos olhos vi(d)rados: anja - com a sabedoria dos que sentem
Sinto escorrerem doçuras
pérolas brancas encharcadas
por todos os cantos
por todas as curvas
por todos os entres
onde se encontra a alma?
onde se encontra a cara? a face crua, delineada?
a um palmo a frente ou dentro, sei disso
Encosto calma em tudo
leves e lentas dedilhadas em toda superfície
na aura, na alma, nos lábios
os toques também são pérolas e escorrem
leves densos espasmos até le petit mort
quando tudo no espaço se une e se funde num ato

1 de outubro de 2010

Fui por excesso, volto pelos vazios

       

         É claro que não fui embora por falta de sentimento. Nunca me despedi por falta de amor ou falta de vontade do corpo do outro ou por ficar enjoado com as manias grosseiras: já estou quase nos trinta e sei me adaptar. Dessa vez fui para me encontrar e saber onde você estava aqui dentro. De nada adianta insistir nas cicatrizes quando não sabemos mais aonde estão as marcas. 
          Lembra das dores fortes de cabeça? Além delas, todas as noites ganho também a máxima certeza de que tudo o que vivi desde que fui embora é apenas ilusão, sonhos desses que prendem sem libertar, pesadelo, vertigem, miragem, crueldade de mim para comigo para que eu possa aprender a viver dentro de uma redoma de sentimento. Auto-punição pelos pensamentos que carrego distraído quando caminho.  
           A casa, as ruas, as pessoas e as sensações se apresentam diferenciadas. Parece que não mesclo mais com o meio - Sou eu e pronto, entende? Eu e pronto, entendendo, caminhando, pensativo e mal vestido sem conseguir cruzar ou interagir um pouco mais a fundo.
          Tento recordar com detalhes e seriedade os últimos abraços, os últimos olhares, a inocente pergunta que fizeste e a traição que viria logo mais eu dissesse que preferia a mim do que a nós.
           Daniel, o que posso dizer agora? Sei que agi como animal a procura da dita liberdade de um leão em sua selva selvagem e carnívoro completamente tomado pelo instinto. Te pergunto: Nunca sentiste isso? Essa inquietude e agonia e desespero? Nunca sentiste vontade de jogar tudo para o alto e desistir, simplesmente? Porque, sim, ser corajoso é enfrentar, ser corajoso é dizer que iremos até o final não importa o que aconteça nem quem venha pelo caminho ou as consequências que virão.
         Daniel, e a coragem de dizer 'não quero, prefiro minha solidão', não conta? Ou vê tudo isso como covardia? Ou achas que é fácil dizer para o par de olhos que mais me olharam que eles não vão mais pousar sobre meu corpo nos próximos eternos instantes? E logo esse teu par de olhos... São tantas as perguntas que me faço que não desejo mais respostas. Fui fiel até o último momento e ainda assim me sinto um canalha apenas pelo fato de ter sido sincero comigo - ou ao menos tentado ter um tempo para respirar e pensar com minha própria consciência.
         Há uma semana não durmo como antes. A começar pelo colchão que por tanto tempo abandonado, não se encaixa mais aos meus ombros largos e causam as dores matinais de que tanto reclamo aos amigos do trabalho. Não passo mais o café em casa para não ter que ver apenas uma xícara em cima da mesa. Tenho vontade de ligar e dizer: estou indo, Daniel, estou arrependido, não sei sobre as coisas que falei no último dia daquela semana em que quis desfazer tudo o que tínhamos tecido, mas não vou dizer todas essas coisas. Não estou arrependido de correr atrás de mim, ainda que esteja preguiçoso, cansado e pensando em abandonar-me. O tempo é sabio, deve ser. Tanto ouvi que levei como verdade: o tempo é menino esperto e louco e serve para colocar os ponteirinhos do cérebro e do coração no lugar. Não?    
        Sei que fingi a mim mesmo que coloquei a cabeça nos conformes: cortei as unhas, fiz a barba, aparei o cabelo e saí de casa mesmo não tendo compromissos. Viver de aparências nem é tão difícil assim. O problema é com o espelho, que sabe de tudo. Não sucumbi ao escuro do quarto, a cortina de colcha presa por um prego qualquer na parede e nem as minhas vontades de relembrar tudo o que passamos e vivemos e morremos - porque morremos um pouco sim nesse último ano, não adianta negarmos. Viver é quase um eterno descascar-se. De qualquer forma, consegui não sucumbir aos vícios, que era e devem ser ainda o teu maior medo. Vou me manter são, Daniel, ainda que pela metade e ainda que por enquanto - não sei sobre o futuro sem teus sorrisos.
        Quero dizer apenas que quando afundo a cabeça no travesseiro, o corpo todo por dentro se revira como se gritasse: você sabe que está errando, Maurício. Você sabe que não se encontra assim fácil um outro alguém, você sabe que todos os outros que conheceu nos últimos cinco anos não se comparam nem equiparam nem pode ser colocados em paralelo com o teu Daniel. Deito e só ouço esses pedidos do universo. Pedidos de pensamento e reflexão: está correta, Maurício, sua atitude? Também não sei mais. Percebe em como já está entranhado em meus cômodos e roupas de cama e carma e astral tudo o que foi vivido? E o que virá depois?
        Está doendo, Daniel.
       Sei que não tens mais nada a ver com a minha dor. Saiba apenas que quero ter tudo a ver com a tua alegria.

28 de setembro de 2010

Clara esfrega os olhos

(Por uma melhor percepção dos sentidos)
            Passou os dedos frios e suados com força no couro cabeludo entre os cabelos em cachos desordenados e simulou uma espécie de segurar os fios, prendê-los, soltá-los, cortá-los ou qualquer coisa, depois desistiu. Estava realmente com o corpo cansado, pensou. Os dedos, então, abriram a torneira, lavaram-se e dirigiram-se aos olhos que mal tinham tido tempo de acordar quando aquelas quase plásticas fotografias opacas se instalavam entre o que poderia ser real, o que era real e o que simplesmente não é mais por culpa do tempo e dos gênios.
            A torneira cintila com os primeiros raios de luz que entram pelo vasculhante. Os olhos, que são em sua maior parte vermelhos, não sabem ao certo o que vêem.  
            Clara esfrega os olhos.
            Clara esfrega os olhos.
            Clara esfrega os olhos sem parar e o que enxerga são as malditas imagens. De início fotografias destorcidas, depois ganham nitidez e são acrescidas de sons e texturas. Misturam-se, as visões.    
            Clara esfrega os olhos.         
             As fotografias se sobrepõe em imagens que disparam os mais humanos sentimentos, percebe através do embrulho que sente na região da garganta. E como são cruéis os sentimentos humanos, mesmo os mais avassaladores e que dizem que vieram para o bem. Não confiem mais, é o que quero dizer. O bem quase não existe.      
           Acordei e... digo, o que fiz foi um gesto involuntário de, na tentativa de fugir dos pesadelos,  abrir os olhos num súbito como que para escapar do pior - estava por vir, eu sei que sim -, levantar no tempo nobre das minhas manhãs de segunda-feira e me encaminhar para algum lugar qualquer que não haja tanta luminosidade. Os gestos iniciais são apenas instintivos. Posso dizer que ainda estava dormindo, tentando lavar os olhos e esquecer ou lembrar qualquer coisa quando aquelas malditas imagens... são desordens de memórias? excessos de estradas e becos? acúmulos das sensações? Eu tinha acabado de me encontrar no momento em que me percebo eu, tão única solitária no apartamento, cumprindo a sina, a rotina, a lógica distorcida das ideias.
 Tinha fomes, expectativas e incertezas, como qualquer mortal consciente.
            sai daí, sua cachorra, sai do meu lugar que esse lençol em que deitas muitas vezes gozei com a mulher para quem você diz juras de amor no pé do ouvido já sujo de juras antigas e ainda assim cheiroso e lindo, imagino. 
             Saia daí agora que esse lugar de conforto onde te amparas é meu, a mulher que beijas e lambes e acaricias etc etc etc.
            Abriu os olhos.
            Abri os olhos. Acordei? Um feixe de luz invadiu o banheiro pelo vasculhante. Não vejo amarelo ou laranja. A temperatura está fria, por volta dos vinte graus, e a coloração do dia cega de tão branca. Mais tarde acinzenta.
            Clara não consegue respirar direito pelas narinas obstruídas e mantém a boca aberta para saírem os sentimentos.
            Sei que sou de lugar nenhum, mas sou de quem? E essas imagens que vejo? Cansei de analista, psicólogo, psiquiatra. Quero um médico mais forte, talvez um neurologista.
            Na última ida para consertar os graus das lentes, perguntei: Incolores, então, as memórias, ou ficam em transparente em cima do presente como uma catarata que nos impede de bláblábláblá? O médico disse que eu estava muito bem, que havia até tido um progresso desde a última visita e que estava inventando coisas. Ou são em preto e branco mesmo, distorcidas? Queria saber, doutor, se é assim com todo mundo esse negócio de cobrir a visão de lembranças...
            Então descobri sozinha um tempo depois: dentro da retina temos cones, bastonetes e as lembranças, que ficam coladas às imagens reais que perpassam a visão. Sim, como cataratas invisíveis existenciais para o eterno ciclo da vida. Aí parei de esfregar os olhos: não desgrudam nunca.

14 de setembro de 2010

te durmo

Sei que deveria ter colhido rosas no dia de hoje ou preparado as mais belas cartas ou simulado os melhores abraços - pra depois transferi-los todos unicamente a você. Sei também que o tempo é relativo e peço que aceite ao menos os beijos de palavras enquanto o corpo não se mexe nessa madrugada.
Fumo o último cigarro do dia de olhos bem fechados fazendo pedidos. 
Em sonhos mesmo, me obrigando a sonhar acordado, acabo de entrar em sua casa na calada da noite com a chave que um dia esquecestes aqui "quase sem querer" para que realmente pudesse ser surpreendida ou invadida. Após todos esses meses, me sinto segura para adentrar o universo. Entro pisando leve como nunca faço. No corredor, chego a me perguntar se realmente estou andando ou se estou flutuando rumo ao seu quarto, já que não ouço barulho de passo algum. Olho para os pés e confirmo: estou flutuando. Abro a porta e você está dormindo exatamente como imaginei. Sento na cama tentando não te acordar, amanhã vai ser um dia cheio e é preciso que haja disposição. Beijo sua testa e você se mexe, ainda com a sobrancelha franzida dos últimos pensamentos antes do sono. Pensa que não sei? Te beijo de novo. Dessa vez, beijo todo o seu rosto com um cuidado e um carinho que não consigo medir em tamanho, em medida alguma, sei apenas que me sinto preenchida quando toco os lábios na pele branca. Solto frases bobas e verdadeiras ao pé do seu ouvido e, enquanto recito as promessas, peço os perdões e digo as juras de amor, sinto o cheiro de liberdade azul adocicada entre os seus cabelos e sorrio. Você também sorri e já não tem mais o franzir de cenho que tinha quando cheguei. Você se aninha no meu corpo como os pássaros fazem quando querem proteção. Se alinha e se encaixa proporcionalmente ao meu corpo e deixo, claro que deixo - já não tenho o que fazer e estou rendida, é isso a única coisa que desejo antes de voltar ao mundo lá fora. 
Pelas vibrações do momento, sinto que nos acalmamos - com a ajuda também das brisas da noite e da lua-sorriso. Te abraço forte e te envolvo inteira nos meus braços pequenos e durmo, ainda que nos sonhos; te durmo por mais uma vida inteira, coração.

16 de agosto de 2010

Faz frio.          
Como quase todos os meus antigos vizinhos cariocas em dias de inverno, o primeiro comentário que teço às pessoas que convivo ou vejo se referem ao tempo e a temperatura. 
Estou sozinha, portanto falo comigo:          
- faz frio. Minhas mãos estão geladas, mas não tenho luvas. Aqui onde moro, nem guarda-chuva costumo levar, quem dirá luvas, cachecóis, casacos de pele...       
  Concluindo: Não só faz frio, como também não estou agasalhada o suficiente, então sinto mais frio do que os outros que caminham confortáveis postos em suas jaquetas revestidas de lã. Há a ameaça das nuvens se dissiparem e começar o espetáculo do grande astro amarelo. Mas por enquanto ainda não o vejo. Estou em Veneza enquanto caminho pela Avenida Rio Branco. Caminho a pé e sem destino tentando conhecer lentamente o grande barco. Hoje pago mais por uma rosa do que por uma entrada no Theatro Municipal todo dourado. O que é o ouro , afinal? Ainda pago mais por uma rosa, especialmente hoje, que chove fino nas margens do rio que não deságua. Uma rosa cor de sinceridade e calmaria. Quem sabe um buquê.          
- Rio que não deságua transborda           
    Continua chovendo na cidade. Saio de Veneza e do barco e do rio (- para onde vai?) rapidamente quando vejo os Arcos. Os Arcos estão mais brancos, não estão? Até quando? Esses dias um mendigo limpou a merda do seu cão e só duas almas enxergaram - almas poucas e brandas. Até quando? Quantas mais? E querem limpar a nossa sujeira.
 - Também não sei onde está o rio que não deságua. Se transbordar, enxergo. 
     Eu tenho medo é das correntes. Ou não. Não sei se tenho medo. De resto, tento não pensar por onde fluiu e quais as energias que carrega. Não tenho fé, mas ainda cultuo os instantes. Águas sem antecedentes, sem rumos, sem fins, sem um mar sequer onde mesclar as gotas. E faz frio. Por enquanto, nada do Sol para fazer evaporar as gotas.
Estou segura. 
Estamos seguros. 
Vejo os Arcos e os arcos estão claros. O céu está de um mármore leitoso. Veneza não se foi, mas não existe mais em matéria croncreta. Terá existido um dia exibida ao meu olhar curioso? 
Não, não há rio algum por onde se pode navegar, o rio é dentro. O dia poeira e poucas pessoas. Piso o chão e desconfio. Toco o chão. Tenho certeza. Toco o tapete branco. Existimos calmos como o rio adentro, quente como os asfaltos do nosso rio, mesmo não sendo Veneza, 
- e não é que isso acalma, quando fica frio?

12 de julho de 2010

 

Não sou homem e não sou mulher. Exatamente por isso, em determinadas épocas não falo nem como. Mordo, animalesco e agressivo. Perto do dia em que nasci, eu danço, toco tambores, reverencio minha mãe grande útero com voz de sereia no corpo que não defino. Não sou um contador de histórias, um narrador, um poeta. Nomeio-me um sem nome substantivo próprio masculino. Porque, quando se vive percebendo os detalhes, deixa-se de agregar e começa-se a fluir. Flui-se com os horários, com os encontros, com as contas, com a predominância do gênero. De resto, nada gruda: deixamos que passe, como esperamos que passe a tosse crônica de noites agoniantes. Nomeio-me masculino porque já não desejo mudar os estigmas. Vivi até agora iludido, ilusionista ferrenho, no lapidar do grande muro-linguagem de tijolos-palavras. O que são as cores? Deslizam moribundas por sob minhas retinas: as capto, mas não são matéria e parecem descoladas das superfícies. Vejo cores como filtros que escondem a verdadeira monocromática das peles que vestem os seres. Disseram-me sobre a dissolução de coisas indissolúveis ao meu entender: o café e o doce, a pele e a pele, o entardecer e a fome. Troco histórias, personagens, vontades. Para alguns, sorrir é encontrar o caminho. Perco o foco quando sorrio, mesmo com os olhos negros luzes. Aliás, pergunto-me: como escrever em segundos em retinas o endereço para onde devem ir os sorrisos? Os sorrisos têm é vida própria, como os olhares.

21 de junho de 2010

o grande Arthur

    Seria: o grande senhor Arthur, completando mais uma década de vitórias e bons salários mas não: o puto do covarde, olhos desconfiados, curvatura proposital para observar as donzelas todas moças de saias de pregas e cabeças de cabelos soltos. Além de relembrar reclamando e clamando as amantes de outros tempos Ah, Erika, Carolina, Dulce, Mariana, Luciana, Danielle e tantas mais, A alma em podridão na carne talhada que, antes de despedir-se da amada, no leito onde a mulher pintou o sorriso do gato no céu, branco como dentes de negros escravos, esse mesmo Arthur, que poderia ser e não é, esse corpo de músculos tendidos e tensos diz: Foda-se! Diz foda-se à amada, foda-se e nem lembra-se pelo quê. Grosseiro, grotesco, machista. Desde quando, Arthur, andas tão arredio?
Não me faça perguntas difíceis,

30 de maio de 2010

Miragens

Miragem. Quando anoitece, eu canto.
Tem vezes que falo demais, sabe, Jorge? Tem vezes que falo de menos. Tem vezes que nem mesmo falo, fico cá quietinha com meus turbilhões de grilos inside me. Nem me movo. Miragens, Jorge. Quando anoitece, eu canto. Ela tosse, ele desvia. E desviar era como se concordasse e adivinhasse previamente, visto que os textos se repetiam sem a menor cerimônia. Quando anoitece, eu encanto. Não penso em nada, ou talvez em algum Paraíso perdido, que nunca acho nem mesmo quando imagino. Procuro por estrelas, Jorge, enquanto capto as nuances dos que sorriem com os olhos. Imagine só, sorrir apenas com os olhos, as duas bolotas pulando num centro ondulante que circunda, Jorge. Só as duas bolotas denunciam, Nada mais, Nada menos. Feição alguma se modifica, inclusive os dedos as pontinhas que por vezes fazem roídos ensurdecedores, nem mesmo os dedos se movem, ficam quase que mortificados. No entanto, a pessoa sorri. Entendo o porque sorriem, Jorge, vejo o encanto nos olhos dos encantados, ainda que o mundo e todos sejam um desencanto só, um grande desamparado filho de uma filha da puta que renegou sua prole e a expulsou de casa - o seu único filho na rua! -, todos A angústia em meio a. A tantas outras coisas, Jorge, tantas outras dores que não adianta discutirmos mais. Além de tudo, estamos quase sem voz. Temporariamente impedidos. Impelidos por uma sombra qualquer dentro de nós - ou seria luz? claridade? impulsovital algo-no-fim-do-túnel? Impelidos por isso que não nomeamos para isso que insistem em chamar de vida, essa crueldade insana. Do que falo? Ora, Jorge, falo do humano. Não sou mais a calma bonitona do 15, penso que é uma maravilha chegar a uma certa idade e poder fluturar por entre as personalidades que existem no âmago de nossa sinceridade (coisas que nós sabemos e mantemos a sete chaves, um esconderijo quase aquoso que destruiria o Todo). Estamos perdidos e esse é o destino e a salvação. Já sabemos disso. Sim, a natureza. Sim, a rebeldia do fogo e das águas. Sim, as chuvas enlouquecedoras. Sim, os desmoronamentos, o derretimento de geleiras, o mundo transbordando-se e não cabendo mais. De qualquer forma, aqui dentro Acumulam-se dias, Jorge, dias tensos em pilhas, e lhe pergunto: para quê? Para quê tantos dias empilhados como blocos de contratos em cima da mesa do escritório. conta-se mais de três mil?, porque já perdi as contas (...)

21 de maio de 2010

Uma roda axial é o que é a vida
presa a um eixo imaginário
nunca as mesmas voltas
nunca os mesmos círculos
no entanto, roda, a coitada
como se fosse chegar
como se existisse lugar
como se essas palavras caóticas como redenção salvação cura (amor) pudessem fazer sentido
senão perde o eixo e destrambelha tudo
por isso roda, a danada
sabendo-se motora de sua própria existência
não se sabe se sabe ao certo o que é viver assim
e de vivência tem crostas na pele
marcas e manchas nas ancas, arredondadas
então desiste de entender:
sangrar é bom, mas fatal
Então Continua rodando, a roda,
no eixo da humanidade desigual

27 de abril de 2010


Que me dizes, ein? Topas? Junta teus trapos com o meu? Posso agora nomear-te minha senhora? é que me dói em dois minutos o coração após tua partida. Hein? Combinados, então?
E ele todo cauteloso, preocupado. Ela distraída, talvez um pouco cansada. Mas não escondia nos olhos dissimulados que estava feliz. Ele meio nervoso ainda, talvez a temperatura um pouco alta, quase febre; podia sentir o pescoço ferver e as mãos quase em fogo, talvez fosse um suor quente que o corpo fabricava para afastar o frio.
Roberto era o nome dele, que sou eu, e Bela era como eu a chamava, embora atendesse por Maria do Carmo, seu nome de batismo.
Minha bela, assim combinamos que seria. Não é que eu não gostasse de Marias, mas ela merecia um nome como Bela.
E o convite foi feito porque ela me afastava dos maus pensamentos. Os abraços e o nariz afundado no cangote. Os ombros como areia onde enterrávamos os focinhos e ficávamos por horas, as patinhas passando pelas costas alheias, que eram quase um corpo só, nós dois ali nos abraçando, minha respiração meio ofegante porque eram tantos pensamentos bons que eu só fazia correr para alcançá-los. Um cachorrinho que eu era, com a língua pra fora pedindo carinho. Mas eu não tinha vergonha porque ela também tinha lá umas loucuras desse tipo. E quando tirava a roupa e ficava toda coberta pelos lençóis caríssimos que eu comprava pensando exatamente nisso, no leve tecido na pele macia da Bela, e ficava encolhidinha escondendo aquelas formas todas de mulher. Eu queria só isso, que ela me abraçasse e ficasse ali comigo deitada na minha cama. Pelada e encolhidinha para sempre, a minha fêmea. E quando isso acontecia, vinham os abraços porque eu sempre tive braços para esquentá-la, sempre pesei o corpo sobre o dela para que entendesse que eu a protegia e que nada de mal lhe poderia acontecer. Topas, Bela?
Ela feliz, mas livre. Juntar os trapos... mas minhas coisas nem são trapos. E nem as suas, meu bem, não fale assim, ela dizia. Desconversava, e eu insistindo e os nossos olhos chorosos porque é assim que se descobre, em conversas bobas e perguntas bobas, é assim que se descobre que é bom como está, que ainda o coração vai doer a cada vez que ela for embora. Talvez nessas viagens ela nunca mais volte e eu passe a comprar lençóis baratos.
Choramos. Nunca mais falamos disso até hoje.
Ela ainda vem, disperdiça seu tempo na minha cama nova, prepara o café e fica, cara, fica pelada encolhidinha, agora deixando os seios à mostra. Não sei se é porque a intimidade nos despe dos pudores ou porque quer que eu saiba que está aberta para mim, como se os seios fossem o coração, sabe como? Como se deixasse transparecer que eu posso aquece-la sempre que fizer frio.
Topas, Bela? dividir comigo tua solidão?
-Não.
E Roberto nunca mais levou ninguém em casa. Roberto não sai de casa. Roberto nem tem mais casa porque não pode se chamar de casa aquilo onde ele vive. Casa, Bela? Faz do Roberto também um homem livre.

14 de abril de 2010

"Os dedos se moviam como se roçassem e coçassem uns aos outros, autônomos e auto-suficientes num movimento que, quando em ápice, deixava no ar o desespera de que nunca se findariam. As pernas se cruzavam quase ininterruptamente e os pés agitados balançavam-se em círculos também infindos; bebericava ansiosa para que a cafeína fizesse efeito e acordasse e começasse a pensar não mais com imagens turvas e sim, repetia agora para si mesma - em voz baixa para que os passantes não desconfiassem -, claramente. Tinha de pensar claramente antes que tudo virasse sombra e contornos embaçados."

30 de março de 2010



A menina entra em casa. Havia saído às 8h, às pressas, e agora deviam ser quase nove horas da noite. A casa vazia, mas nada em seu lugar.
Enquanto isso, a mulher já está sentada em um sofá branco de sua antiga e eterna residência, rodeada de parentes e amigos, mas um tanto quanto só, e sabia isso por conta dos arrepios que tinha de vez em quando: assim: sentada no sofá branco, rodeada de parentes e amigos, às vezes escapolia o olhar para a janela. Se sentia atraída pelo céu, por astrologia e pelos anjos. Não posso dizer com certeza, mas acredito que a mulher acreditava em anjos tanto quanto a menina. Levantava do sofá e, como era frio e não se agasalhava muito bem, vinha um leve arrepio, os pêlos dos braços ouriçados e também os do pescoço e os da perna. Fechava as janelas e voltava à mesa central, onde abraçava sua mãe e se sentia protegida. Apesar de tudo (apesar de todo o cansaço, das dores em todo o corpo e do braço paralisado devido a uma torção nos últimos ensaios), conseguia aconchego em colo materno. Mas mesmo depois de aquecida, mesmo com a lareira, mesmo com as janelas fechadas, outros e outros arrepios durante toda a noite. Era aí que verificava: estou um tanto quanto só por dentro.
Com a menina a mesma coisa. A casa em si mostrava a solidão, e aquela solidão em que não se teve tempo para deixar tudo em ordem, à espera de. Nada esperava ninguém na casa da menina. Pelo contrário, parecia querer mandar todas as coisas embora, inclusive a própria menina junto às malas dos recém chegados e enviá-los a rua próxima para que fossem felizes. A casa sentia isso, que o melhor que uma menina que não queria estar ali poderia fazer, era, de fato, ficar longe. Não é que ela não quisesse, mas isso a casa não sabia, simplesmente sentia bem o peso da ausência e da distância nos ombros da menina.
Mas perdurava, ela. De nada adiantava ir, se o principal estava longe. De que adiantam os móveis, a cortina, o ambiente? A menina gostava era do recheio, que sempre fora o principal, e então o arrepio: talvez por saber que essa noite ela não poderá acender um cigarro, descer as escadas e fazer uma mini serenata na rua ao lado. Porque frio não estava no Rio de Janeiro, muito menos na Lapa, então como se explicam os arrepios?
É que a menina também se sentia só.

Faz parte do seu show? Porque se for tudo um grande drama, mesmo sofrendo, eu aceito. e sinto junto como se estivesse no palco contigo. Tenho medo apenas que vire mania, exagero, obsessão - porque não vou aguentar. Não consigo segurar todos os pedaços do corpo numa única massa se esse embrulho que estou sentindo, que me impede inclusive de tomar o café!, se prolongar por tanto mais.
Entende? Aguento pouco, os pedaços se descolam rapidamente e quando tenho só cabeça, troncos e braços, quando o resto das pernas, dos dedos e das coxas estão embaraçados e trancados na mão esquerda para que não escapem, as cortinas se fecham. Consigo pouco a pouco ir remendando todas as partes. Dá certo sim, e concordo que não deixa de ser um show saber se refazer. Mas as mãos são perigosas. Se me tiras as mãos, não tenho onde guardar o meu resto e me perco. Tenho medo de me perder por querer assistir demais. Não sei se você me entende, não sei se estou sendo obscura em minhas palavras.
Estou baleada nesse momento. É diferente ser baleada dessa forma; parece que dentro da bala havia uma granada que se explodiria no momento em que entrasse pele adentro. E foi assim. Estou metáforica hoje, não ligue. Mas a granada ocupou tudo violentamente, tremendo o corpo, escondendo o brilho dos olhos inchados e tapando os ouvidos. Só ouço zumbidos por aqui e o ventilador me irrita profundamente. A arma que dispara a bala é feita da possibilidade de que não acredites mais. Não consigo compreender, combinamos sobre clareza, verdade e leveza e nossos olhos respondiam por si mesmos. Era claro e verdadeiro e leve que soubéssemos do fato de que com o destino não se brinca. Por vezes você pegou minha mão no meio das grandes avenidas como se quisesse dizer: não me deixa. E não deixei.
Se faz parte do grande show, que seja em curta temporada. Meu pedido no final é que se liberte do passado, de tudo, de todos!, e consiga fechar os olhos confiante. Por enquanto estou baleada e sei que em breve as vibrações da explosão da granada chegam ao coração. Fé e amor para nós.


18 de fevereiro de 2010

Faço de conta que conto histórias,
que conto os dias
(embora eu não esteja menos que desnorteada ou mesmo perdida),
que cato e
conto borboletas que voam e voltam por sob as cores diversas das flores de dezembro.

16 de fevereiro de 2010

Para Giul Jr e nossas viagens


Sim, foi o que dissemos na última viagem: somos caixas de pandora e nossos segredos devastariam as civilizações. bombas atômicas? epidemias? meteoros? sempre cabem demônios e os piores pesadelos do mundo no fundo falso da aparente silenciosa carcaça. Vejo isso agora pelo espelho, tentando enxergar guela adentro alguma coisa que esteja prestes a sair, a boca arreganhada como se uma mordaça estivesse prestes a puxa-la por completo - talvez seja por isso a tosse constante e os pigarros sempre pela manhã. quantos gritos escondidos ou colados mesmo a madeira? ao cristal? ao gesso? de que são feitas nossas paredes? quantos gritos abafados por costuras e pontos de lã para que ficasse quente por dentro e a voz virasse água e fosse mandada embora pela pele como suor. Toda aquela pele molhada é como um corpo amordaçado tentando dizer alguma coisa, você não vê? Estamos amordaçados embora nossos lábios ainda se movam. Estamos no silencio ainda que dentro esteja um alvoroço quase carnavalesco. Ah, essas revoluções...lembro que passeávamos pelas ruas recém descobertas e perto daquela praça onde não paramos e daquele bar onde não bebemos, havia uma construção e algo parecido com uma caixa gigante, foi o que falamos, você lembra? Exatamente assim: uma caixa gigante de madeira. Somos tão sonhadores. E você disse que era como aquela caixa e disso nunca esqueço. Não estávamos sozinhos nesse dia, havia mais duas pessoas com os pés calmos duvidosos e quando você disse sou essa caixa e eu olhei e sorri e pensei que sou quase isso mesmo, ninguém nos entendeu, meu amor. Você percebeu isso? Quase ninguém nos entende. Você seguiu dizendo que, quando se abrisse (e não sabia por qual motivo se abriria e nem com o quê seria feita essa abertura), seria como uma explosão. Porque você é fogo, eu pensei, orgulhosa. E eu disse que a minha caixa tinha um buraco já, que eu estava vazando pela parede ou pelos poros aos poucos e que depois fluiria todo o resto e os mistérios se revelariam. Porque sou ar, meu pequeno. E não importando o elemento, somos vivos e temos muito o que mostrar por aí. Segredos quase ininteligíveis, meu amor., e temos que arcar com todas as consequências de se viver a flor da pele e a mercê dos sentidos. Você vê? Você sente isso?

9 de fevereiro de 2010

Diz no jornal que amanhã vai chover a tarde. Talvez eu aguente essa chuva, eu penso, agora meio sem querer pensar em nada, só em voltar ao momento exato em que entrei em casa hoje e desistir de tudo o que fiz ou de nada que fiz para dormir um pouco; talvez ela me limpe mesmo, afaste essa loucura, esse desespero, essa insônia.
Talvez a chuva me acalme amanhã, que é hoje, talvez se alguém estiver me ouvindo eu possa ficar mais calma também, companhias sempre acalmam e afastam os medos, ainda que em silêncio, talvez eu tome um leite quente e consiga alguns minutos com os meus olhos fechados. Pobres olhos intensos que querem devorar tudo o que vêem, pobres olhos famintos que não descansam há horas. Pobre de mim, que ainda não juntei os quebra-cabeças da minha mente e já é tarde, ou cedo?, e eu preciso me retirar desse quarto que me prende de olhos abertos. Preciso me retirar de mim ante que o dia comece sempre corrido.
Já estou atrasada. O café, os cigarros, as duas aplicações de corretivo embaixo dos olhos e estou pronta. As pálpebras pesarão por horas e infelizmente um dia de calor. Pancadas de chuva ao entardecer, eu li no jornal. Talvez eu aguente, então. Quero que chova, quero sentir as roupas como fardos nos ombros fatigados e chegar aqui outra vez, amanhã ou hoje quando voltar a anoitecer, e aí sim, me retirar e poder dormir um pouco. Afinal, loucos, desesperados e insones também precisam de sonhos.

(Escritos de Março)

1 de fevereiro de 2010

No fim, o sol sobre o vidro da janela do ônibus deixando visível a poeira acumulada dos dias. Só isso era visto com total nitidez: leves borrões feito camada cinza intercalada no vidro quando o sol vinha impedoso depois das tempestades- porque era preciso que tudo secasse senão nos desesperaríamos, úmidos e gelados com os trapos como vestimenta e ombros vergados. Nos pneus, imagino, muita lama, assim como no couro do tênis do rapaz a frente e do meu também. Estamos todos enlameados com roupas molhadas de suor e chuva. A gola da minha blusa tem lágrima, mas ninguém percebe - se misturam salgadas, quase imperceptíveis, deixando apenas pequenas manchas esbranquiçadas, posso dizer quiçá como o vidro e sua poeira, eu e minhas lágrimas formando manchas na blusa desbotada. Eu? Talvez sim, ando sempre nervosa em ruas que não conheço. Não digo medo, digo nervosismo. Não tenho intimidade nenhuma com os becos, os homens, as cores - ando nervosa pé ante pé verificando os perigos e gravando as memórias. Nessa cidade, o pôr-do-sol é mais bonito, me disseram, e comprovei no primeiro dia, meus olhos estavam ainda brilhantes da descoberta. Mas depois, todos esses dias isso: o trem na ida, depois um ônibus, depois as moscas a perturbar-me o almoço, flashes de cenas inesquecíveis (e quanto mais só me sinto, mais flashes se apoderam dos meus vastos pensamentos), a espera longa da próxima condução visto que sempre me atraso, e aí aquilo tudo: o ônibus e depois o trem e depois vinte ou trinta minutos caminhando por essas ruas limpas (não tenho intimidade com ruas limpas: não as reconheço; minhas estradas, os atalhos, os cantos e os bares são sujos, sujos e me acostumei a isso, hoje em dia nem faço estardalhaço se jogam bitucas de cigarro e papéis de picolé pelo chão. Penso apenas que estamos todos perdidos, bem como sujos, molhados e cheios de lama)
Agora é o trem e quase não sinto solavancos. Nesse último banco, alguma coisa jogada com os olhos fechados. As mãos agora tateiam o rosto. Reconhecendo os traços?, nem os traços mais reconheço, embora consiga lembrar desse toque leve de ponta de dedos. Eu? Seja lá o que isso signifique, parece que sou eu que me toco e sou eu essa jogada no banco do trem com os ombros vergados a reparar a camada de poeira em todas as janelas

22 de janeiro de 2010

Fiquei pensando em alguma coisa que seja direta e absolutamente simples. Sim, estou com mania de dizer absolutamente. Ânsias do absoluto, você me entende. Não quero dizer algo novo, quero chegar apenas ao que me toca por dentro e flui junto com o sangue nas veias por todo o corpo. Alguma coisa direta e absolutamente simples que explique o porquê de tudo acontecer diferente agora. E dizendo diferente me refiro ao modo avassalador com o qual te renheço e me reconheço a partir das imagens que vejo. Coisas palpáveis ou não, reais, sensoriais, imaginárias, não importa. Fiquei pensando em coisas que possam explicar. Sei que por serem coisas humanas nunca poderiam ser simples, mas questionamos o real e sabemos que por trás de tudo isso deve, sim, haver algum sentido. Uma salvação? E buscamos, fundamentadas, as respostas. Vindas talvez dessa simplicidade do vital? Ah, Às vezes sabemos tão pouco. O céu está claro agora. Gosto do céu quando claro, costumo fechar os olhos castanhos como se pudessem cegar com tamanha luminosidade, depois os abro com calma, os olhos acostumando-se aos poucos. E respiro fundo, em seguida suspiro. Sinto doce nesse amanhecer, mas não acho as palavras certas, elas se perdem. Absoluta e diretamente simples, eu quero o silêncio pra falar de você.

14 de janeiro de 2010

Criaram braços, esses que eram tão pequenos. E criaram pernas que se movem dentro do meu frio apartamento. Criaram corpos donos de si mesmos. Criaram olhos que me observam até mesmo a noite, na solidão do meu quarto com cheiro de fumaça verde mentolada. Fizeram-se em vontades, em ordens, em um regime nada democrático que me obriga a fazer tudo o que é pedido: mudar uma palavra aqui, outra ali, apagar parágrafos, reorganizar personagens, colocar um salto vermelho na Giovanna. Meus contos se contam por si e eu sou só um meio através do qual eles se mostram aos outros, exibidos!, porque embora tenham braços, pernas, corpos e olhos ainda não sabem falar e muito menos escrever. E que não aprendam, senão eles mesmos se farão e só sobrará a fumaça verde no meu quarto escuro.

(Fútil Bagagem, 2008)

11 de janeiro de 2010

Eram dois rostos colados e dois corpos estirados, um em cima do outro, numa madrugada de janeiro. Se fosse amor de verão, poderiam manter até certo contato depois. Porque não? Afinal, maduros com certeza eram. Como está tudo por aí? Por aqui anda bem, família, amigos, empregos, alguns lances não não não falo de amor, falo de lances saídas pequenas paquerinhas, nada sério, depois de você... Ou virariam amigos, não sobraria sequer a vontade, o desejo, o tesão. Assim: tim tim por tim tim tudo quitado. Sim, era janeiro e era verão e eles eram dois corpos quentes borbulhantes que se esquentavam mais e mais e mais (porque os dois sempre quiseram muito) e mais um pouco: explodiam, os dois corpos, mas haviam se encontrado e descoberto tanto: um ao lado do outro. O aqui e o aí era o mesmo, não importava que fosse verão e que a cidade estivesse abarrotada de gente, eles eram dois corpos e se interessavam, então bastava.
O menino mais novo, com os olhos fundos e pequenas olheiras assanhadas, não mais assustado como no começo, quando vinha furtivo pelas ruas escuras já quase dez da noite, ruas perigosas o mais velho dizia, e digo mais velho não porque ele fosse velho, porque era novo, mas porque tinha alguns anos de estrada e um bocado a mais de sabedoria. O menino mais novo, então, com os olhos fundos e profundos, o corpo que estava sobre o corpo de baixo, modulava as sílabas e os lábios:
- Como uma ponte? Não sei, você... pra mim... esse teu jeito de olhar as coisas. São essas suas visões que me servem de óculos... não, não, não... sabe que às vezes grito não,não,não pra mim? Você está fazendo com que eu me quebre em pedaços e me remonte inteirinho a teu gosto. E eu gosto. Não, não, não, e às vezes puxo uns chumaços de cabelo à noite, bato a cabeça no espelho pra ver se corta alguma coisa, e nada se corta quando tento me auto-sacrificar por acreditar nas tuas palavras de amor e lealdade (Porque nunca tive! Porque nunca tive é que não sei e não acredito, você me perdoa? Você que sabe tanto das coisas). Não consigo me machucar mais, talvez porque você seja a cura. Sei que estou me nutrindo do teu alimento, que é a tua verdade - a verdade dita aqui como alma, essência, aura, sabe? no plano espiritual, meio místico mítico talvez até mitologico. Sei que se me tirassem agora os seios que me alimentam, seria quase fim. Chego a pensar que aos poucos eu vou entender que se você não chegasse, eu desmoronaria: eram tantas terras e pós e valas e chuvas e desabamentos- um dia desmoronaria tudo e eu embaixo das terras chovendo uma chuva fina para molhar o corpo já sem vida. Penso, sim, nas forças dos Deuses, não me ache infantil dizendo issso, eles encaminham dois corpos como os nossos, feridos ferinos ferozes, para as mesmas ruas e ali se dá a ruptura. Sim, rompi com o universo quando os Deuses te colocaram te coloriram e te musicaram pra mim. Eu romperia com tudo,
contudo estamos todos entrelaçados demais, essa juventude, esse mundo, essas idéias e todos os interesses, não há como romper assim com todas as forças - porque seríamos tidos como loucos. E se isso for a total sanidade? Esse amor que você dizia enquanto em mim era ainda semente, esse amor lança fina que veio certeiro e não machucou, apenas leves pontadas quase cócegas, depois de tocar no fundo. A única coisa que sei é que você é a ponte,
E que em me perderia sem você. E romperia com o mundo com você. E quando cansássemos de nossas feições, porque isso pode acontecer, não há ilusão, só há a realidade posta clara na mesa, as cartas nesse jogo que jogamos a cada vez que abrimos os olhos e enxergamos as imagens ainda embaçadas: é aí que começa, e quando cansássemos de olhar nos olhos um do outro, olharíamos o mundo. Vasculharíamos com os olhos de pessoas que recém recuperaram a visão, estaríamos famintos. Todos os lugares todos os parques e os museus e as ruelas e os bares e os cinemas e os teatros e o inferno eu vasculharia também. Pra depois de novo me afundar nos vestígios teus (que concordamos serem nossos) e procurar novos pêlos novas pintas e descobrir que o cheiro é o mesmo em qualquer milímetro do teu corpo.

5 de janeiro de 2010

loucura autoconsciente


Lembrava do que o médico dissera: sim, Marcela, você precisa de supervisão diária por um determinado período, você está sem controle. Não é para o seu mal, é perigoso te deixar sozinha por enquanto. E, afinal de contas, vai ser um tempo em que você pode pensar em todos os acontecimentos com mais calma, com mais auto-controle... respirava, o médico, como se buscasse forças para dar a notícia de que ela não andava muito bem. Dizer, assim, que agora ela não poderia mais ser independente, como fora, como desejara, como lutara em mostrar-se durante toda a vida às outras pessoas era, sim, complicado. Com um pouco de auto-consciência, entende? Vai ser bom pra você, continuava, respirando pausadamente entre as doses de incentivo.
Auto-consciência! Auto-consciência! Como se eu não tivesse uma auto-consciência. O problema disso tudo, doutor, é que eu tenho um total controle sobre todos os acontecimentos da minha vida, eu sei exatamente as coisas que eu sinto, sei das entranhas, das veias, sei do peito quando dispara, dos tremores quando fico nervosa ou melancólica ou angustiada - dos tremores e dos frios, das dores nas costas, nos pés e dos dedos amarelados. Isso. Sei, inclusive, do vício quase psicológico do cigarro. Psicofísico, físicopsíquico, não seria tudo a mesma coisa? Sei que me acostumei também, mas sinto por vezes meus neurônios se debatendo desesperados. Sinto isso dentro da minha cabeça. Sinto tudo, sinto tanto, nada deformado, tudo real, tudo bruto, entende? Você não entende... tudo primitivo, na primeira camada, na primeira essência. E não pense que isso é superficial não, doutor, de maneira nenhuma. A primeira camada bruta é quase transparente que consigo enxergar o mais fundo dentro do corpo das pessoas: consigo até mesmo sentir as sensações alheias através de uma redoma criada que chamo de aura entre os relacionamentos - e a neurolinguística chama de empatia- eu consigo ver, sentir - com cheiro, toque, quase cor- o que se passa na mente da outra pessoa e como isso reflete em mim. É muito abrangente, doutor. Eu tenho auto-consciência, sim, uma auto-consciência doída e desesperada, e é isso que o senhor não entende.
Ah, mas não conseguia falar tudo isso, seria esforço a toa. Não entenderiam. Calou-se naquela sala toda iluminada e fingiu num rosto calmo que entendia que estava doente, que, quem sabe, seria mesmo um tempo de repouso e descanso que a faria retomar com muito mais qualidade de vida as rédeas da existência - da MEDÍOCRE! da medíocre existência de não desvendar os mistérios - teria só que buscar suas coisas em casa, alguns livros, alguns filmes - poderia ver filmes aqui?, perguntava, e o doutor dizendo sim, você pode e deve fazer coisas que gosta e que costumava fazer. Ela: só preciso disso e volto amanhã. Ele: Amanhã às 10h? Ela concordou com a cabeça e nunca mais voltou.

3 de janeiro de 2010

-Eu vou sonhar o sal suave do suor das tuas curvas, ela disse, pouco antes de ir. numa cor quase vermelho escuro enquanto os cabelos molhados ainda pingavam gotinhas pelas costas que escorriam até os ombros ou logo abaixo, pequenas gotas furtivas por dentro da blusa de alcinha, a outra percebia dizendo: Vou ficar triste, entende? Mas vou gostar de estar triste porque vou saber que em algum lugar existe alguém triste por mim. Não só tristeza, mas quando dói saber que costuraram (alguém, Deus, o Senhor Destino) uma outra alma na sua própria alma e depois arrancar as linhas e os pontos e. Por isso que dói. É aquela coisa de sorrir enquanto dentro as lágrimas escorrem enlouquecidas, eu acho.
- Eu vou reinventar todos os teus traços antes de dormir. Quando eu acordar e a cama estiver vazia (só o meu peso bem pesado quase morto cansado esmagado), vou levantar devagar com os movimentos quase esquecidos e mecânicos. Não mais os movimentos certeiros e intencionais: levantar e pegar o café, depois te oferecer e te servir, aí sentar nas cadeiras brancas enquanto o dia lá fora começa a todo o vapor e falar e falar e falar, falamos tanto sempre, e depois deitar no sofá e pedir pra que nunca mais me deixe, pra que continue tudo sempre assim. Tudo e sempre. Te confessar que você é o que eu criava, embora não soubesse, e repetir todas as frases todas as vezes todas as horas. Pra que você não esqueça e não tenha medo. Lembra, meu amor - e te chamo de amor e agora te reconheço como minha da mesma forma que me reconheço como tua-, do que dizia aquele conto: basta não teres medos excessivos. Mas quando eu acordar e não ouvir os seus sussurros cheios de sonhos, não mais vão existir essas coisas sentidas e faladas no calor do momento, no calor do centro do rio, no calor de nossas peles. Eu ficarei calada, então. Não haverá som depois que eu acordar e a cama estiver vazia. O silêncio. Nunca uma cama poderia pesar tanto quanto a minha, silenciosa entre os lençóis e cobertores não arrumados e o travesseiro guardando ainda uns fios de cabelo como um tesouro, e dentro, quando eu afundar a cara marcada na fronha branca, dentro, lá no fundo, um resquício do teu cheiro. E então, com os movimentos mecânicos, vou levantar da cama e olhar a janela. Não vejo ruas, só vejo prédios pela janela do meu quarto, talvez onze e meia, vou deduzir, quase meio dia, já que não tenho estímulos para me levantar da cama tão cedo, e vou fechar as cortinas e fingir que já é noite. Tenho certeza que logo depois vou correr para as prateleiras desesperadamente pra pegar o teu retrato. Sei que farei isso apesar de nunca ter ficado longe por tanto tempo. Ou principalmente por nunca ter ficado longe por tanto tempo. Não quero esquecer sequer uma expressão. Com o seu retrato em mãos, vou sentar de novo na cama por mais um tempo: refazendo gestos, buscando marcas, reconhecendo o brilho dos seus olhos na fotografia e depois. E depois estou pensando que vou decidir não sair nunca mais de casa. Isso. Vou decidir nunca mais sair de casa, só esperando. Você entende que toda espera vale?