30 de março de 2010



A menina entra em casa. Havia saído às 8h, às pressas, e agora deviam ser quase nove horas da noite. A casa vazia, mas nada em seu lugar.
Enquanto isso, a mulher já está sentada em um sofá branco de sua antiga e eterna residência, rodeada de parentes e amigos, mas um tanto quanto só, e sabia isso por conta dos arrepios que tinha de vez em quando: assim: sentada no sofá branco, rodeada de parentes e amigos, às vezes escapolia o olhar para a janela. Se sentia atraída pelo céu, por astrologia e pelos anjos. Não posso dizer com certeza, mas acredito que a mulher acreditava em anjos tanto quanto a menina. Levantava do sofá e, como era frio e não se agasalhava muito bem, vinha um leve arrepio, os pêlos dos braços ouriçados e também os do pescoço e os da perna. Fechava as janelas e voltava à mesa central, onde abraçava sua mãe e se sentia protegida. Apesar de tudo (apesar de todo o cansaço, das dores em todo o corpo e do braço paralisado devido a uma torção nos últimos ensaios), conseguia aconchego em colo materno. Mas mesmo depois de aquecida, mesmo com a lareira, mesmo com as janelas fechadas, outros e outros arrepios durante toda a noite. Era aí que verificava: estou um tanto quanto só por dentro.
Com a menina a mesma coisa. A casa em si mostrava a solidão, e aquela solidão em que não se teve tempo para deixar tudo em ordem, à espera de. Nada esperava ninguém na casa da menina. Pelo contrário, parecia querer mandar todas as coisas embora, inclusive a própria menina junto às malas dos recém chegados e enviá-los a rua próxima para que fossem felizes. A casa sentia isso, que o melhor que uma menina que não queria estar ali poderia fazer, era, de fato, ficar longe. Não é que ela não quisesse, mas isso a casa não sabia, simplesmente sentia bem o peso da ausência e da distância nos ombros da menina.
Mas perdurava, ela. De nada adiantava ir, se o principal estava longe. De que adiantam os móveis, a cortina, o ambiente? A menina gostava era do recheio, que sempre fora o principal, e então o arrepio: talvez por saber que essa noite ela não poderá acender um cigarro, descer as escadas e fazer uma mini serenata na rua ao lado. Porque frio não estava no Rio de Janeiro, muito menos na Lapa, então como se explicam os arrepios?
É que a menina também se sentia só.

Faz parte do seu show? Porque se for tudo um grande drama, mesmo sofrendo, eu aceito. e sinto junto como se estivesse no palco contigo. Tenho medo apenas que vire mania, exagero, obsessão - porque não vou aguentar. Não consigo segurar todos os pedaços do corpo numa única massa se esse embrulho que estou sentindo, que me impede inclusive de tomar o café!, se prolongar por tanto mais.
Entende? Aguento pouco, os pedaços se descolam rapidamente e quando tenho só cabeça, troncos e braços, quando o resto das pernas, dos dedos e das coxas estão embaraçados e trancados na mão esquerda para que não escapem, as cortinas se fecham. Consigo pouco a pouco ir remendando todas as partes. Dá certo sim, e concordo que não deixa de ser um show saber se refazer. Mas as mãos são perigosas. Se me tiras as mãos, não tenho onde guardar o meu resto e me perco. Tenho medo de me perder por querer assistir demais. Não sei se você me entende, não sei se estou sendo obscura em minhas palavras.
Estou baleada nesse momento. É diferente ser baleada dessa forma; parece que dentro da bala havia uma granada que se explodiria no momento em que entrasse pele adentro. E foi assim. Estou metáforica hoje, não ligue. Mas a granada ocupou tudo violentamente, tremendo o corpo, escondendo o brilho dos olhos inchados e tapando os ouvidos. Só ouço zumbidos por aqui e o ventilador me irrita profundamente. A arma que dispara a bala é feita da possibilidade de que não acredites mais. Não consigo compreender, combinamos sobre clareza, verdade e leveza e nossos olhos respondiam por si mesmos. Era claro e verdadeiro e leve que soubéssemos do fato de que com o destino não se brinca. Por vezes você pegou minha mão no meio das grandes avenidas como se quisesse dizer: não me deixa. E não deixei.
Se faz parte do grande show, que seja em curta temporada. Meu pedido no final é que se liberte do passado, de tudo, de todos!, e consiga fechar os olhos confiante. Por enquanto estou baleada e sei que em breve as vibrações da explosão da granada chegam ao coração. Fé e amor para nós.