28 de outubro de 2010

Impulsos circulares de um obcecado

            Estava triste, tristinho, tal qual Zeca Baleiro em Telegrama, mas nada recebeu que o deixasse feliz com um outro alguém a pensar em sua barba mal feita ou suas unhas roídas. Poderia, mas não: nem telegrama, nem telefonema. Talvez um pensamento? Mas não entendia isso de telepatia, embora fosse dotado de muitos outros conhecimentos. Talvez desnecessários, confessava. Filosofia barata, astrologia, culinária- o que evitava ao máximo para que a esposa não se acomodasse-, funcionamento de aeronaves, evolução das espécies aquáticas, artesanato. Disfarçava, inibido, os outros dotes aléns. Que descobrissem sozinhos, dizia. Poucos descobriam.
            Estava quieto esse dia. Via-se pela falta de ruídos de ônibus - devia ser domingo. Estava quieto nesse dia. Via-se pelo olhar que parara de perambular como nos outros dias. Como se fosse normal, pousava sobre pessoas enquanto essas mesmas gesticulavam com outras em praças enquanto iam aos destinos desejados. Estava quieto e só, sentado em uma cadeira de madeira. Nem era tão mal o restaurante, tampouco a praça que escolhera dentre tantas, tampouco a comida. Devia era ficar feliz. Amém, Senhor, por poder comer esse prato de comida num lugar agradável, sobretudo com ar condicionado e garçons dispostos com sorrisos estampados. Não importa que sejam sorrisos de plásticos, estão aqui a servir-me e além do mais gosto de sorrisos. Sorrisos intrigam.
            Era assim: esquecia-se com pequenas distrações: os garçons dos restaurantes onde almoçava – cada dia em um porto e corpo; a mulher e os filhos quando voltava.  Posto que não importava mais o que viesse, deixava seguir sem se lamentar, apenas lembrando do que ocorrera e do que poderia ocorrer. Seguia com leves esforços ao longo de tudo. Devia deixar quieto, como a consciência dizia, mas esforçava-se um pouco pois sempre fora determinado.
            Não era esperança, sabia que no fundo nada daria certo de fato. Nem queria. Beijos melados nos olhos, conversas sobre a humanidade, a fluidez dos dias, os abraços de apertões confusos sempre recriminados. Não, era claro que não queria isso. Não queria que desse certo como dão certas as histórias que ouvimos de rapazes e moças. Afinal, já tinha ele dado certo e ela também. Louco que era, o que tentava esconder de quase todos, queria era esmagá-la contra a parede, seja para beijos, apertos, entendimentos, qualquer intensa presença dentro, ao redor, nos olhos, em todos os lábios. Não era esperança porque esperança é menino esperando o vagão do trem. Lembranças da primeira namorada por correspondência que nunca veio. Não era nada disso agora. Agora não há fantasias, dizia ao ninguém depois dos tantos goles e apertos por debaixo da mesa. Não há fantasia.
            Quer dizer, há. Tudo é fantasioso e ilusório, mas o real sobrepõe os inventos tornando-os ainda mais fortes, sabe? Garçon, traz mais uma para brindar o lamento. Espero como esperam os budas, como esperam as donzelas, como esperam os desesperados sexuais. É gozo de alma e de corpo: um dia explico. Como Buda, espero. Que venha a menina hermosa numa tarde disponível de qualquer lugar, troca de vidas, esquecimentos e entrega. Já se passaram quatrocentos e sessenta mil horas. Hoje vou cozinhar um belo jantar quando chegar em casa.

23 de outubro de 2010

A Visita Esperada

Para o Caio F




Peguei o taxi após descer o viaduto. O coração era bomba desligada. Explico: ainda não havia sido programada para explodir, como essas que vemos em filmes de ação. Quieta e poderosa em seu silêncio ameaçador, palpitava em segredo. Mesmo assim, o coração era ainda uma bomba de dar medo em sua quietude – nunca se sabe dos fios que ligam e desligam as possibilidades de destroços. Preferi me medicar para não entrar em desespero.
Antes de pegar o taxi e antes mesmo de descer o viaduto, ainda no hotel onde estou hospedada, me maquiei, troquei umas duas ou três vezes de roupa e me perfumei tanto que na ansiedade (e é na falta de propriedade para nomear o sentimento que assim o denomino) o vidro vermelho francês caiu enloquecendo o ambiente com suas damas da noite no início da manhã. Voltei a esse ponto da história para que prestem atenção aos sinais: era manhã, eu havia acabado de acender o incenso de almíscar e logo que comecei os preparativos para a visita, já havia cheiro de dama da noite por todos os lados.
Peguei o taxi. Vou pro Menino Deus, me disseram que podemos ir pela Getúlio Vargas. Sim, senhora. É perto do Guaíba, não é? Sim, mas depende de que parte do Guaíba tu queres ficar. Não não só pra saber.  
Não estava tão frio como eu gostaria, mas o céu era cinza. Observei um pouco o caminho e, como nunca faço, puxei papo com o motorista:
- Vou visitar um grande amigo.
- Bá, tri bom. Faz tempo que vocês se conhecem?
-Pessoalmente nunca, mas de empatia faz uns cinco...
- Cinco o quê
?
- Cinco anos.
- E como é isso?
- Ah. (…) A ge
nte não precisa olhar nos olhos para sabermos que algumas pessoas existem e dividem o existir conosco.
- Filosofia... mas acredito, existe de tudo.
Viramos a esquerda. Vi um caminho quase que colonial feito de palmeiras. As casas eram bem conservadas e bonitas. Pensei que deveria ser bom morar ali onde Deus ainda é menino, mesmo que eu diga ainda que Deus sabe-se-lá-se.
- Está feliz, então, conhecendo o amigo há tanto tempo e só agora... ?
- Tô. Tô sim. No momento tenho medo de explodir, mas esta tudo sob controle. A felicidade segura o descontrole das emoções.

          Três ou quatro perguntas sobre política que respondi no automático porque não estava nem aí para política, partido, relação alguma. Apenas dividi que ia visitar um amigo. Em dez minutos chegamos.
Não existiu tempo.
          Estou na rua Oscar Bitencourt em setenta e cinco. Ainda não nasci, mas venho projetada do futuro para encontrar-te, amigo, e ao menos enquanto ainda estás aqui, abraçar um pouco teu corpo magro e dizer-te palavras bontas. Sei que conheces bem também. Tomaremos um café que eu mesma irei passar. Trouxe bolinhos de chuva, dois maços de cigarros, vinho e camisinhas, que era o que não poderias ter deixado de usar desde sessenta e cinco, menino bonito rebelde. Não digo por gravidezes inesperadas pois disso cuidastes ou cuidastes alguém por ti, a força da atração, coisas, coisas que cuidaram para que não deixasse nada além do que brotou com consciência. Menino único.   
          Toco a campainha. Há dentro de mim uma vaga certeza de que a casa está vazia. Pássaros cantam, o que é absolutamente normal. Flores dançam, excêntricas com a maestria do vento, o que são pequenos presentes divinos de um céu que nem azul é. O blues não chegou por aqui de manhã. Onde estásToco novamente a campainha. Deve estar passeando pelas ruas do centro com seus brincos e lenços. Vim de tão longe, amigo... queria eu que chegasses aqui do nada e me abraçasses pelas costas. Era mesmo para ter acontecido desencontros, desenganos, desamores.
          Venta bastante agora em dois mil e dez. Ele chegou. Não abriu as portas da casa porque já não pode. Não que esteja velho e incapaz de mover-se, mas sua casa não é mais sua, me conta. Está a venda. Me pede com som, cheiro e toque na pele para que eu a compre, assim poderemos tomar os cafés – garante que será possível as duas xícaras na mesa da varandinha do andar de cima, como imaginei. O chamo de bruxo por ler meus pensamentos descaradamente. Ele sorri e insiste que eu compre o sobrado. Não tenho dinheiro, eu digo, e aos poucos vou ficando triste. Não posso comprá-la, não posso comprá-la... Ele pede que eu anote o telefone da imobiliária.
          - Não tenho esse dinheiro, insisto.
          -Alugue-a. Passe aqui uma, duas semanas comigo.
Meu amigo está morto e mudarei meu nome se eu morrer também sem tomar os cafés no frio interior do sobrado como prometemos.


          - Ouvindo Bethânia para sofrermos em beleza, disse.





          - Uma semana?, perguntei. Vou ligar para a imobiliária.





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Meu obrigada a Andrea, do Andrea TPM, que ajudou na realização de um desejo antigo e a @ClarahAverbuck que indicou a @amandacosmos que também sabia o endereço da antiga casa do Caio.



18 de outubro de 2010

Mulheres e a lua

Explode teus lamúrios
todos em cima de mim
Não sou mais que um corpo agora
Escondo as dores e os lamentos
por três horas a noite,
pelos nossos momentos
Explode tuas dúvidas todas
Cospe em cima de quem amas
degluto, degusto, separo células
Te entrego a flor da tristeza
reformulada em beleza
não pranto, confusão, confissão
Transformo em beleza rara,
em calmaria, em alento

Tenho monstros, sei que sabes
quem não os tem?
os demônios rondam até mesmo os bons
expurga-me os demônios!

Não
Assenta-te o semblante
Acalma-te sobretudo o pensamento
Despejas apenas o que corrói
depois tudo é clareza, entendimento
Disfarças o que sentes quando tremo
quando tremes
Passam
como passam nossas dores de cabeça

12 de outubro de 2010

Poderia cantar e me mexer loucamente e ainda assim estaria orientada mesmo que no meio da Praça XV, da Quinta Avenida, em frente ao Museu do Louvre. Poderia começar com just let me hear another rock and roll music fazendo passos leves e passos bruscos enquanto aterrorizados os locais olhariam sem entender. De olhos fechados, por quase 10 minutos ou quanto durasse a alegria, eu poderia dançar e cantar e desligar-me do mundo porque em mim encontro não só o que existo mas o que existe de mim em outro.
Poderia sair correndo em disparado quando em meio a uma segunda-feira tediosa às 12h em ponto começasse a chover pesado em algum centro urbano desses intransitáveis. Os passantes quase putos mas protegidos com seus guarda-chuvas e eu descontrolada correndo apenas para ter a sensação de que chove mais e de que mereço. Porque, em algum lugar, existe quem sente.
Poderia sair do trabalho às 21h como em todos os dias e como em nenhum outro dia tirar a blusa e andar sem sutiãs pelas ruas. Estou nua mesmo. Estou nua porque compreendo, estou livre sem máscara sem dor sem mágoa sem ódio sem glorificações excessivas e adorações infundadas. Sairia do trabalho, pegaria o ônibus e a cada sacolejar de banco e de dor nos seios, saberia que consegui e que meu existir em outro se propaga e permanece.
Poderia todos os escândalos
Poderia todos os silêncios
Poderia todas as provas
Poderia todos os furos e vergonhas
Porque sei que, em algum lugar, existe quem sente.

6 de outubro de 2010

Dedilhando a aura

Entre o suor e a pele
não sendo simplesmente corpo
(o que é extraordinário
quase além-humano: deusa - com a sabedoria dos que sabem)
jorra a ternura nos olhos vi(d)rados: anja - com a sabedoria dos que sentem
Sinto escorrerem doçuras
pérolas brancas encharcadas
por todos os cantos
por todas as curvas
por todos os entres
onde se encontra a alma?
onde se encontra a cara? a face crua, delineada?
a um palmo a frente ou dentro, sei disso
Encosto calma em tudo
leves e lentas dedilhadas em toda superfície
na aura, na alma, nos lábios
os toques também são pérolas e escorrem
leves densos espasmos até le petit mort
quando tudo no espaço se une e se funde num ato

1 de outubro de 2010

Fui por excesso, volto pelos vazios

       

         É claro que não fui embora por falta de sentimento. Nunca me despedi por falta de amor ou falta de vontade do corpo do outro ou por ficar enjoado com as manias grosseiras: já estou quase nos trinta e sei me adaptar. Dessa vez fui para me encontrar e saber onde você estava aqui dentro. De nada adianta insistir nas cicatrizes quando não sabemos mais aonde estão as marcas. 
          Lembra das dores fortes de cabeça? Além delas, todas as noites ganho também a máxima certeza de que tudo o que vivi desde que fui embora é apenas ilusão, sonhos desses que prendem sem libertar, pesadelo, vertigem, miragem, crueldade de mim para comigo para que eu possa aprender a viver dentro de uma redoma de sentimento. Auto-punição pelos pensamentos que carrego distraído quando caminho.  
           A casa, as ruas, as pessoas e as sensações se apresentam diferenciadas. Parece que não mesclo mais com o meio - Sou eu e pronto, entende? Eu e pronto, entendendo, caminhando, pensativo e mal vestido sem conseguir cruzar ou interagir um pouco mais a fundo.
          Tento recordar com detalhes e seriedade os últimos abraços, os últimos olhares, a inocente pergunta que fizeste e a traição que viria logo mais eu dissesse que preferia a mim do que a nós.
           Daniel, o que posso dizer agora? Sei que agi como animal a procura da dita liberdade de um leão em sua selva selvagem e carnívoro completamente tomado pelo instinto. Te pergunto: Nunca sentiste isso? Essa inquietude e agonia e desespero? Nunca sentiste vontade de jogar tudo para o alto e desistir, simplesmente? Porque, sim, ser corajoso é enfrentar, ser corajoso é dizer que iremos até o final não importa o que aconteça nem quem venha pelo caminho ou as consequências que virão.
         Daniel, e a coragem de dizer 'não quero, prefiro minha solidão', não conta? Ou vê tudo isso como covardia? Ou achas que é fácil dizer para o par de olhos que mais me olharam que eles não vão mais pousar sobre meu corpo nos próximos eternos instantes? E logo esse teu par de olhos... São tantas as perguntas que me faço que não desejo mais respostas. Fui fiel até o último momento e ainda assim me sinto um canalha apenas pelo fato de ter sido sincero comigo - ou ao menos tentado ter um tempo para respirar e pensar com minha própria consciência.
         Há uma semana não durmo como antes. A começar pelo colchão que por tanto tempo abandonado, não se encaixa mais aos meus ombros largos e causam as dores matinais de que tanto reclamo aos amigos do trabalho. Não passo mais o café em casa para não ter que ver apenas uma xícara em cima da mesa. Tenho vontade de ligar e dizer: estou indo, Daniel, estou arrependido, não sei sobre as coisas que falei no último dia daquela semana em que quis desfazer tudo o que tínhamos tecido, mas não vou dizer todas essas coisas. Não estou arrependido de correr atrás de mim, ainda que esteja preguiçoso, cansado e pensando em abandonar-me. O tempo é sabio, deve ser. Tanto ouvi que levei como verdade: o tempo é menino esperto e louco e serve para colocar os ponteirinhos do cérebro e do coração no lugar. Não?    
        Sei que fingi a mim mesmo que coloquei a cabeça nos conformes: cortei as unhas, fiz a barba, aparei o cabelo e saí de casa mesmo não tendo compromissos. Viver de aparências nem é tão difícil assim. O problema é com o espelho, que sabe de tudo. Não sucumbi ao escuro do quarto, a cortina de colcha presa por um prego qualquer na parede e nem as minhas vontades de relembrar tudo o que passamos e vivemos e morremos - porque morremos um pouco sim nesse último ano, não adianta negarmos. Viver é quase um eterno descascar-se. De qualquer forma, consegui não sucumbir aos vícios, que era e devem ser ainda o teu maior medo. Vou me manter são, Daniel, ainda que pela metade e ainda que por enquanto - não sei sobre o futuro sem teus sorrisos.
        Quero dizer apenas que quando afundo a cabeça no travesseiro, o corpo todo por dentro se revira como se gritasse: você sabe que está errando, Maurício. Você sabe que não se encontra assim fácil um outro alguém, você sabe que todos os outros que conheceu nos últimos cinco anos não se comparam nem equiparam nem pode ser colocados em paralelo com o teu Daniel. Deito e só ouço esses pedidos do universo. Pedidos de pensamento e reflexão: está correta, Maurício, sua atitude? Também não sei mais. Percebe em como já está entranhado em meus cômodos e roupas de cama e carma e astral tudo o que foi vivido? E o que virá depois?
        Está doendo, Daniel.
       Sei que não tens mais nada a ver com a minha dor. Saiba apenas que quero ter tudo a ver com a tua alegria.