28 de setembro de 2010

Clara esfrega os olhos

(Por uma melhor percepção dos sentidos)
            Passou os dedos frios e suados com força no couro cabeludo entre os cabelos em cachos desordenados e simulou uma espécie de segurar os fios, prendê-los, soltá-los, cortá-los ou qualquer coisa, depois desistiu. Estava realmente com o corpo cansado, pensou. Os dedos, então, abriram a torneira, lavaram-se e dirigiram-se aos olhos que mal tinham tido tempo de acordar quando aquelas quase plásticas fotografias opacas se instalavam entre o que poderia ser real, o que era real e o que simplesmente não é mais por culpa do tempo e dos gênios.
            A torneira cintila com os primeiros raios de luz que entram pelo vasculhante. Os olhos, que são em sua maior parte vermelhos, não sabem ao certo o que vêem.  
            Clara esfrega os olhos.
            Clara esfrega os olhos.
            Clara esfrega os olhos sem parar e o que enxerga são as malditas imagens. De início fotografias destorcidas, depois ganham nitidez e são acrescidas de sons e texturas. Misturam-se, as visões.    
            Clara esfrega os olhos.         
             As fotografias se sobrepõe em imagens que disparam os mais humanos sentimentos, percebe através do embrulho que sente na região da garganta. E como são cruéis os sentimentos humanos, mesmo os mais avassaladores e que dizem que vieram para o bem. Não confiem mais, é o que quero dizer. O bem quase não existe.      
           Acordei e... digo, o que fiz foi um gesto involuntário de, na tentativa de fugir dos pesadelos,  abrir os olhos num súbito como que para escapar do pior - estava por vir, eu sei que sim -, levantar no tempo nobre das minhas manhãs de segunda-feira e me encaminhar para algum lugar qualquer que não haja tanta luminosidade. Os gestos iniciais são apenas instintivos. Posso dizer que ainda estava dormindo, tentando lavar os olhos e esquecer ou lembrar qualquer coisa quando aquelas malditas imagens... são desordens de memórias? excessos de estradas e becos? acúmulos das sensações? Eu tinha acabado de me encontrar no momento em que me percebo eu, tão única solitária no apartamento, cumprindo a sina, a rotina, a lógica distorcida das ideias.
 Tinha fomes, expectativas e incertezas, como qualquer mortal consciente.
            sai daí, sua cachorra, sai do meu lugar que esse lençol em que deitas muitas vezes gozei com a mulher para quem você diz juras de amor no pé do ouvido já sujo de juras antigas e ainda assim cheiroso e lindo, imagino. 
             Saia daí agora que esse lugar de conforto onde te amparas é meu, a mulher que beijas e lambes e acaricias etc etc etc.
            Abriu os olhos.
            Abri os olhos. Acordei? Um feixe de luz invadiu o banheiro pelo vasculhante. Não vejo amarelo ou laranja. A temperatura está fria, por volta dos vinte graus, e a coloração do dia cega de tão branca. Mais tarde acinzenta.
            Clara não consegue respirar direito pelas narinas obstruídas e mantém a boca aberta para saírem os sentimentos.
            Sei que sou de lugar nenhum, mas sou de quem? E essas imagens que vejo? Cansei de analista, psicólogo, psiquiatra. Quero um médico mais forte, talvez um neurologista.
            Na última ida para consertar os graus das lentes, perguntei: Incolores, então, as memórias, ou ficam em transparente em cima do presente como uma catarata que nos impede de bláblábláblá? O médico disse que eu estava muito bem, que havia até tido um progresso desde a última visita e que estava inventando coisas. Ou são em preto e branco mesmo, distorcidas? Queria saber, doutor, se é assim com todo mundo esse negócio de cobrir a visão de lembranças...
            Então descobri sozinha um tempo depois: dentro da retina temos cones, bastonetes e as lembranças, que ficam coladas às imagens reais que perpassam a visão. Sim, como cataratas invisíveis existenciais para o eterno ciclo da vida. Aí parei de esfregar os olhos: não desgrudam nunca.

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