5 de janeiro de 2010

loucura autoconsciente


Lembrava do que o médico dissera: sim, Marcela, você precisa de supervisão diária por um determinado período, você está sem controle. Não é para o seu mal, é perigoso te deixar sozinha por enquanto. E, afinal de contas, vai ser um tempo em que você pode pensar em todos os acontecimentos com mais calma, com mais auto-controle... respirava, o médico, como se buscasse forças para dar a notícia de que ela não andava muito bem. Dizer, assim, que agora ela não poderia mais ser independente, como fora, como desejara, como lutara em mostrar-se durante toda a vida às outras pessoas era, sim, complicado. Com um pouco de auto-consciência, entende? Vai ser bom pra você, continuava, respirando pausadamente entre as doses de incentivo.
Auto-consciência! Auto-consciência! Como se eu não tivesse uma auto-consciência. O problema disso tudo, doutor, é que eu tenho um total controle sobre todos os acontecimentos da minha vida, eu sei exatamente as coisas que eu sinto, sei das entranhas, das veias, sei do peito quando dispara, dos tremores quando fico nervosa ou melancólica ou angustiada - dos tremores e dos frios, das dores nas costas, nos pés e dos dedos amarelados. Isso. Sei, inclusive, do vício quase psicológico do cigarro. Psicofísico, físicopsíquico, não seria tudo a mesma coisa? Sei que me acostumei também, mas sinto por vezes meus neurônios se debatendo desesperados. Sinto isso dentro da minha cabeça. Sinto tudo, sinto tanto, nada deformado, tudo real, tudo bruto, entende? Você não entende... tudo primitivo, na primeira camada, na primeira essência. E não pense que isso é superficial não, doutor, de maneira nenhuma. A primeira camada bruta é quase transparente que consigo enxergar o mais fundo dentro do corpo das pessoas: consigo até mesmo sentir as sensações alheias através de uma redoma criada que chamo de aura entre os relacionamentos - e a neurolinguística chama de empatia- eu consigo ver, sentir - com cheiro, toque, quase cor- o que se passa na mente da outra pessoa e como isso reflete em mim. É muito abrangente, doutor. Eu tenho auto-consciência, sim, uma auto-consciência doída e desesperada, e é isso que o senhor não entende.
Ah, mas não conseguia falar tudo isso, seria esforço a toa. Não entenderiam. Calou-se naquela sala toda iluminada e fingiu num rosto calmo que entendia que estava doente, que, quem sabe, seria mesmo um tempo de repouso e descanso que a faria retomar com muito mais qualidade de vida as rédeas da existência - da MEDÍOCRE! da medíocre existência de não desvendar os mistérios - teria só que buscar suas coisas em casa, alguns livros, alguns filmes - poderia ver filmes aqui?, perguntava, e o doutor dizendo sim, você pode e deve fazer coisas que gosta e que costumava fazer. Ela: só preciso disso e volto amanhã. Ele: Amanhã às 10h? Ela concordou com a cabeça e nunca mais voltou.

Um comentário:

Gil Rodrigues disse...

Aconteceu que queria eu ser louco. Aconteceu que eu sou louco, mas para dentro de mim. Assim como outros que dançam na sala de jantar.