28 de novembro de 2009

'As palavras pararam de jorrar há tempos. Hoje mesmo escrevo com esforço e sem identidade. Como é possível escrever se ao longo dessas oito horas infindáveis comecei a anular-me? Meu corpo está pesado, embora vazio, minhas sobrancelhas se acostumam ao franzir de cenho e penso despretensiosamente se ficarei assim com essa expressão rancorosa por toda a minha vida.'
Uma vez você disse que gostava quando eu pintava os lábios com o velho batom vermelho, disse que isso cortava-me a inocência pueril que pareço ter pela pele macia e bem cuidada. Então você pediu em um outro dia que eu acreditasse, que eu continuasse seguindo todos aqueles ideais e aquelas idéias porque embora a minha boca pintada mostrasse maturidade e flamejasse desejos, eu era ainda uma criança e era de suma importância que eu não me perdesse, que eu me mantivesse calma e consciente. Meu bem, eu comecei, e confesso que tive vontade de rir quando você proferiu esse discursinho careta de ter fé e segurei os músculos da face lisa para não terminar numa gargalhada irônica, meu bem, comecei, estou desacreditada. Veja bem, ontem mesmo era carnaval e te ofereci cama quentinha depois do desfile na Sapucaí e casa perfumada de incenso de limão pra ficarmos bonitas e inteligentes - como se fosse verdade, como se pudesse realmente ser- e café doce pela manhã com villa lobos ondulando suave, mas você não veio. Depois era outubro e nada tinha mudado a não ser os três ou quatro quilos a menos por culpa da maravilhosa sensação de fome que tomei como vício naqueles tempos e que perdura até hoje, em verdade no momento exato meu estômago faz mil reclamações, mas eu não ligo, é assim que tem que ser agora: necessito sentir que tudo funciona aqui dentro.

Era sexta-feira quando te chamei pra segunda e é bizarro lembrar que era sexta-feira e que o fim de semana nunca havia demorado tanto para ter um fim - logo o sábado que rendia na época suor pelo corpo todo e o corpo todo eletrizado pulando no centro de uma boate, eu e aquelas tantas outras mulheres.
E o sábado, te digo, o sábado foi lento, lento, lentíssimo. Todos os segundos cravados. Eu fui pra Copacabana naquele ímpeto de que tudo fosse esquecido - e tudo significava a arte da espera. Nunca tive vocação pra ficar parada esperando, sempre me neguei a deixar o meu destino na mão de qualquer pessoa senão eu (mesmo que até hoje eu não saiba realmente quem eu sou e se confio em mim também não sei, mas).
A casa estava tão vazia que as paredes, além de ouvidos, se permitiam bocas também e começavam a falar coisa qualquer que pouco me importavam, alguns conselhos, alguns caminhos e atalhos, mas eu não precisava de conselhos, caminhos, atalhos, eu só queria que a porra do tempo passasse voando, eu fui pra fria copacabana já escura na esperança de enroscar as pernas em qualquer outra perna para que as horas não fossem sentidas, MAS FORAM! e me arrependi de ter saído de casa, estivesse eu mais sã ou mais louca tomaria remédios e dormiria por dois dias inteiros até que

4 de novembro de 2009

Estou aqui andando e decoro tudo o que penso para que seja possível depois a documentação, para que você as conheça, essas idéias. A rua é estreita no início, mas como continuo andando, vejo que se alarga pelo final e os terrenos que eram vazios se preenchem com casas imensas que foram sede disso e daquilo lá por mil e oitocentos. Ninguém me disse isso, percebo porque mesmo sem interesse a percepção é presente. São construções fantásticas, você tinha que ver!, e a rua não possui postes desses convencionais, mas uns postes quase como lustres tingindo de tinta amarela a parede dos edifícios e dessas antigas casas. Até meu rosto parece meio sombrio agora que cheguei ao outro lado da calçada.
Sempre passo por aqui nesse horário, quando venho. Cinco e pouquinha, quase seis da tarde. O céu está escurecendo, mas como as casas são grandes e a rua é larguíssima aqui no fim, é possível apenas ver os últimos feixes que o sol lança lá pelo horizonte, no fundo.
Paro numa dessas casas, a que eu acho a mais bonita. Elego-a a mais bonita porque havia umas casas como essa nos meus sonhos de infância e na minha doce juventude. Parece um castelo com esse cimento frio e cinzento que muda de cor quando os lustres se acendem.
São várias pequenas varandinhas com grandes janelas na parte da casa que vejo.E te imagino ali, com um vestido de noiva vermelho, abrindo a grande janela da pequenina varanda. Seus olhos fitam algo que não entendo, talvez uma figura colada à retina, que faz com que qualquer outro sinal seja insignificante aos seus sentidos porque seus olhos não se mexem. Talvez você sinta a rua pelos ouvidos ou pela pele. Talvez outras sensações sejam as mais importantes, não consigo definir isso direito. As mãos seguram o parapeito e as suas cores colorem de fogo o sépia da paisagem.
Fico parada observando, tentando de todas as maneiras captar os detalhes do seu rosto, da roupa, dos cabelos balançando suavemente, porque a tardinha faz um vento bom, mas logo você some.
Aperto bem os olhos para limpar a visão e trazer-te de volta. Pisco desesperadamente e nada. O que você fazia ali, criada naquelas janelas lindíssimas, eu simplesmente não sei. Não quero saber. Não é birra, só não quero criar teorias da saudade, não me interessa explicar porque isso ocorre. Não interessa entender-me mais. Somente lhes conto para que saiba que em meu inconsciente há sua fisionomia escondida e que me basta uma casa-castelo qualquer, me basta uma rua bonita, um lustre, um olhar penetrante, me basta qualquer coisa – às vezes efêmera, pequena, quase um nada para outros olhos, mas uma porta de lembranças para os meus devaneios, então você se projeta diante de mim.
Já escureceu. Viro a esquina porque não me interessa a beleza solitária dos castelos. É a princesa, aliás, que dá vida a essas construções frias.