22 de janeiro de 2010

Fiquei pensando em alguma coisa que seja direta e absolutamente simples. Sim, estou com mania de dizer absolutamente. Ânsias do absoluto, você me entende. Não quero dizer algo novo, quero chegar apenas ao que me toca por dentro e flui junto com o sangue nas veias por todo o corpo. Alguma coisa direta e absolutamente simples que explique o porquê de tudo acontecer diferente agora. E dizendo diferente me refiro ao modo avassalador com o qual te renheço e me reconheço a partir das imagens que vejo. Coisas palpáveis ou não, reais, sensoriais, imaginárias, não importa. Fiquei pensando em coisas que possam explicar. Sei que por serem coisas humanas nunca poderiam ser simples, mas questionamos o real e sabemos que por trás de tudo isso deve, sim, haver algum sentido. Uma salvação? E buscamos, fundamentadas, as respostas. Vindas talvez dessa simplicidade do vital? Ah, Às vezes sabemos tão pouco. O céu está claro agora. Gosto do céu quando claro, costumo fechar os olhos castanhos como se pudessem cegar com tamanha luminosidade, depois os abro com calma, os olhos acostumando-se aos poucos. E respiro fundo, em seguida suspiro. Sinto doce nesse amanhecer, mas não acho as palavras certas, elas se perdem. Absoluta e diretamente simples, eu quero o silêncio pra falar de você.

14 de janeiro de 2010

Criaram braços, esses que eram tão pequenos. E criaram pernas que se movem dentro do meu frio apartamento. Criaram corpos donos de si mesmos. Criaram olhos que me observam até mesmo a noite, na solidão do meu quarto com cheiro de fumaça verde mentolada. Fizeram-se em vontades, em ordens, em um regime nada democrático que me obriga a fazer tudo o que é pedido: mudar uma palavra aqui, outra ali, apagar parágrafos, reorganizar personagens, colocar um salto vermelho na Giovanna. Meus contos se contam por si e eu sou só um meio através do qual eles se mostram aos outros, exibidos!, porque embora tenham braços, pernas, corpos e olhos ainda não sabem falar e muito menos escrever. E que não aprendam, senão eles mesmos se farão e só sobrará a fumaça verde no meu quarto escuro.

(Fútil Bagagem, 2008)

11 de janeiro de 2010

Eram dois rostos colados e dois corpos estirados, um em cima do outro, numa madrugada de janeiro. Se fosse amor de verão, poderiam manter até certo contato depois. Porque não? Afinal, maduros com certeza eram. Como está tudo por aí? Por aqui anda bem, família, amigos, empregos, alguns lances não não não falo de amor, falo de lances saídas pequenas paquerinhas, nada sério, depois de você... Ou virariam amigos, não sobraria sequer a vontade, o desejo, o tesão. Assim: tim tim por tim tim tudo quitado. Sim, era janeiro e era verão e eles eram dois corpos quentes borbulhantes que se esquentavam mais e mais e mais (porque os dois sempre quiseram muito) e mais um pouco: explodiam, os dois corpos, mas haviam se encontrado e descoberto tanto: um ao lado do outro. O aqui e o aí era o mesmo, não importava que fosse verão e que a cidade estivesse abarrotada de gente, eles eram dois corpos e se interessavam, então bastava.
O menino mais novo, com os olhos fundos e pequenas olheiras assanhadas, não mais assustado como no começo, quando vinha furtivo pelas ruas escuras já quase dez da noite, ruas perigosas o mais velho dizia, e digo mais velho não porque ele fosse velho, porque era novo, mas porque tinha alguns anos de estrada e um bocado a mais de sabedoria. O menino mais novo, então, com os olhos fundos e profundos, o corpo que estava sobre o corpo de baixo, modulava as sílabas e os lábios:
- Como uma ponte? Não sei, você... pra mim... esse teu jeito de olhar as coisas. São essas suas visões que me servem de óculos... não, não, não... sabe que às vezes grito não,não,não pra mim? Você está fazendo com que eu me quebre em pedaços e me remonte inteirinho a teu gosto. E eu gosto. Não, não, não, e às vezes puxo uns chumaços de cabelo à noite, bato a cabeça no espelho pra ver se corta alguma coisa, e nada se corta quando tento me auto-sacrificar por acreditar nas tuas palavras de amor e lealdade (Porque nunca tive! Porque nunca tive é que não sei e não acredito, você me perdoa? Você que sabe tanto das coisas). Não consigo me machucar mais, talvez porque você seja a cura. Sei que estou me nutrindo do teu alimento, que é a tua verdade - a verdade dita aqui como alma, essência, aura, sabe? no plano espiritual, meio místico mítico talvez até mitologico. Sei que se me tirassem agora os seios que me alimentam, seria quase fim. Chego a pensar que aos poucos eu vou entender que se você não chegasse, eu desmoronaria: eram tantas terras e pós e valas e chuvas e desabamentos- um dia desmoronaria tudo e eu embaixo das terras chovendo uma chuva fina para molhar o corpo já sem vida. Penso, sim, nas forças dos Deuses, não me ache infantil dizendo issso, eles encaminham dois corpos como os nossos, feridos ferinos ferozes, para as mesmas ruas e ali se dá a ruptura. Sim, rompi com o universo quando os Deuses te colocaram te coloriram e te musicaram pra mim. Eu romperia com tudo,
contudo estamos todos entrelaçados demais, essa juventude, esse mundo, essas idéias e todos os interesses, não há como romper assim com todas as forças - porque seríamos tidos como loucos. E se isso for a total sanidade? Esse amor que você dizia enquanto em mim era ainda semente, esse amor lança fina que veio certeiro e não machucou, apenas leves pontadas quase cócegas, depois de tocar no fundo. A única coisa que sei é que você é a ponte,
E que em me perderia sem você. E romperia com o mundo com você. E quando cansássemos de nossas feições, porque isso pode acontecer, não há ilusão, só há a realidade posta clara na mesa, as cartas nesse jogo que jogamos a cada vez que abrimos os olhos e enxergamos as imagens ainda embaçadas: é aí que começa, e quando cansássemos de olhar nos olhos um do outro, olharíamos o mundo. Vasculharíamos com os olhos de pessoas que recém recuperaram a visão, estaríamos famintos. Todos os lugares todos os parques e os museus e as ruelas e os bares e os cinemas e os teatros e o inferno eu vasculharia também. Pra depois de novo me afundar nos vestígios teus (que concordamos serem nossos) e procurar novos pêlos novas pintas e descobrir que o cheiro é o mesmo em qualquer milímetro do teu corpo.

5 de janeiro de 2010

loucura autoconsciente


Lembrava do que o médico dissera: sim, Marcela, você precisa de supervisão diária por um determinado período, você está sem controle. Não é para o seu mal, é perigoso te deixar sozinha por enquanto. E, afinal de contas, vai ser um tempo em que você pode pensar em todos os acontecimentos com mais calma, com mais auto-controle... respirava, o médico, como se buscasse forças para dar a notícia de que ela não andava muito bem. Dizer, assim, que agora ela não poderia mais ser independente, como fora, como desejara, como lutara em mostrar-se durante toda a vida às outras pessoas era, sim, complicado. Com um pouco de auto-consciência, entende? Vai ser bom pra você, continuava, respirando pausadamente entre as doses de incentivo.
Auto-consciência! Auto-consciência! Como se eu não tivesse uma auto-consciência. O problema disso tudo, doutor, é que eu tenho um total controle sobre todos os acontecimentos da minha vida, eu sei exatamente as coisas que eu sinto, sei das entranhas, das veias, sei do peito quando dispara, dos tremores quando fico nervosa ou melancólica ou angustiada - dos tremores e dos frios, das dores nas costas, nos pés e dos dedos amarelados. Isso. Sei, inclusive, do vício quase psicológico do cigarro. Psicofísico, físicopsíquico, não seria tudo a mesma coisa? Sei que me acostumei também, mas sinto por vezes meus neurônios se debatendo desesperados. Sinto isso dentro da minha cabeça. Sinto tudo, sinto tanto, nada deformado, tudo real, tudo bruto, entende? Você não entende... tudo primitivo, na primeira camada, na primeira essência. E não pense que isso é superficial não, doutor, de maneira nenhuma. A primeira camada bruta é quase transparente que consigo enxergar o mais fundo dentro do corpo das pessoas: consigo até mesmo sentir as sensações alheias através de uma redoma criada que chamo de aura entre os relacionamentos - e a neurolinguística chama de empatia- eu consigo ver, sentir - com cheiro, toque, quase cor- o que se passa na mente da outra pessoa e como isso reflete em mim. É muito abrangente, doutor. Eu tenho auto-consciência, sim, uma auto-consciência doída e desesperada, e é isso que o senhor não entende.
Ah, mas não conseguia falar tudo isso, seria esforço a toa. Não entenderiam. Calou-se naquela sala toda iluminada e fingiu num rosto calmo que entendia que estava doente, que, quem sabe, seria mesmo um tempo de repouso e descanso que a faria retomar com muito mais qualidade de vida as rédeas da existência - da MEDÍOCRE! da medíocre existência de não desvendar os mistérios - teria só que buscar suas coisas em casa, alguns livros, alguns filmes - poderia ver filmes aqui?, perguntava, e o doutor dizendo sim, você pode e deve fazer coisas que gosta e que costumava fazer. Ela: só preciso disso e volto amanhã. Ele: Amanhã às 10h? Ela concordou com a cabeça e nunca mais voltou.

3 de janeiro de 2010

-Eu vou sonhar o sal suave do suor das tuas curvas, ela disse, pouco antes de ir. numa cor quase vermelho escuro enquanto os cabelos molhados ainda pingavam gotinhas pelas costas que escorriam até os ombros ou logo abaixo, pequenas gotas furtivas por dentro da blusa de alcinha, a outra percebia dizendo: Vou ficar triste, entende? Mas vou gostar de estar triste porque vou saber que em algum lugar existe alguém triste por mim. Não só tristeza, mas quando dói saber que costuraram (alguém, Deus, o Senhor Destino) uma outra alma na sua própria alma e depois arrancar as linhas e os pontos e. Por isso que dói. É aquela coisa de sorrir enquanto dentro as lágrimas escorrem enlouquecidas, eu acho.
- Eu vou reinventar todos os teus traços antes de dormir. Quando eu acordar e a cama estiver vazia (só o meu peso bem pesado quase morto cansado esmagado), vou levantar devagar com os movimentos quase esquecidos e mecânicos. Não mais os movimentos certeiros e intencionais: levantar e pegar o café, depois te oferecer e te servir, aí sentar nas cadeiras brancas enquanto o dia lá fora começa a todo o vapor e falar e falar e falar, falamos tanto sempre, e depois deitar no sofá e pedir pra que nunca mais me deixe, pra que continue tudo sempre assim. Tudo e sempre. Te confessar que você é o que eu criava, embora não soubesse, e repetir todas as frases todas as vezes todas as horas. Pra que você não esqueça e não tenha medo. Lembra, meu amor - e te chamo de amor e agora te reconheço como minha da mesma forma que me reconheço como tua-, do que dizia aquele conto: basta não teres medos excessivos. Mas quando eu acordar e não ouvir os seus sussurros cheios de sonhos, não mais vão existir essas coisas sentidas e faladas no calor do momento, no calor do centro do rio, no calor de nossas peles. Eu ficarei calada, então. Não haverá som depois que eu acordar e a cama estiver vazia. O silêncio. Nunca uma cama poderia pesar tanto quanto a minha, silenciosa entre os lençóis e cobertores não arrumados e o travesseiro guardando ainda uns fios de cabelo como um tesouro, e dentro, quando eu afundar a cara marcada na fronha branca, dentro, lá no fundo, um resquício do teu cheiro. E então, com os movimentos mecânicos, vou levantar da cama e olhar a janela. Não vejo ruas, só vejo prédios pela janela do meu quarto, talvez onze e meia, vou deduzir, quase meio dia, já que não tenho estímulos para me levantar da cama tão cedo, e vou fechar as cortinas e fingir que já é noite. Tenho certeza que logo depois vou correr para as prateleiras desesperadamente pra pegar o teu retrato. Sei que farei isso apesar de nunca ter ficado longe por tanto tempo. Ou principalmente por nunca ter ficado longe por tanto tempo. Não quero esquecer sequer uma expressão. Com o seu retrato em mãos, vou sentar de novo na cama por mais um tempo: refazendo gestos, buscando marcas, reconhecendo o brilho dos seus olhos na fotografia e depois. E depois estou pensando que vou decidir não sair nunca mais de casa. Isso. Vou decidir nunca mais sair de casa, só esperando. Você entende que toda espera vale?