Devo estar delirando. Arrancaram de mim os dentes pela raiz. Ainda sinto gosto de sangue, mas alí, distraida, perdi todos os ônibus que me levariam ao destino desejado, que já nem lembro qual, se é que desejo algum destino. Alí, em pé e distraída, quando refiz teu rosto e teu corpo, deixei-me horas sem enxergar passantes, esquinas, movimentação; te recriando para mim e só, até que começou a chover. Chovia muito e já era noite; eu gosto de chuva, mas eu não queria que você se molhasse ali no chão de asfalto. Resolvi voltar pra casa. Sou adaptável; não por nascença ou instinto, mas porque se desenvolveu em mim ao longo desses anos a doce arte de fazer da realidade um mundo dotado de todas as minhas possibilidades. Necessito adaptar-me para bem usufruir os raios quentes de sol, as gotas frias da chuva, o vento gélido e quase aterrorizante que chega a beira-mar quando anoitece.
Não fui embora completamente. Mantenho-te. Acompanha-me?
Só o bilhete e a tua ausência, como de costume. Como se dissesse querer prolongar nossa sensibilidade. Como se implorasse disfarçadamente a permanência do elo nunca soldado. Mas onde? pensei em perguntar e tive a certeza de que você responderia: dentro. Acompanha-me dentro, que é exatamente onde estamos, que é exatamente onde podemos estar.
Então fecho os olhos. Você não foi embora completamente. Fecho os olhos e Te recrio para suprir a falta, se é que me entende. E quando olho bem dentro de mim e acho o dentro do fundo dos teus olhos, mergulho e nesse momento exato se abre um abismo entre o conhecido e o intocável e inatingível, embora tão perto, tão perto, e mergulho me afundo me afogo e quantos oceanos nos teus olhares. Continuo, resignada, escondendo nos olhos úmidos o pedido implícito que me fizeste, a resposta óbvia e demasiadamente clara: acompanho-te, acompanho-te, e levo nos olhos ainda o pacto inimaginável das nossas estradas unificadas. Coloquei Radiohead quando cheguei. Bad day, eles dizem. That's not me. Ah, Essa louca insone de coração rasgado vestida com a capa de cansaço e vício e perda e fome de realidade, mas pensando sempre nisso: no mergulho no dentro e nos olhos; alimentada de ilusoes, essa louca. Mergulho mais e mais e mais depois do abismo. Às vezes o mar vira céu e as algas nuvens e as ondas anjos lindos anjos lindas ondas quebrando-se sobre as pedras cristalinas, tudo isso eu vejo. Passo agora dias inteiros num choro calmo, mas controlado. Acompanho. Um pouco de tristeza ainda: nunca compreendi os motivos. Mas sinto plumas me envolvendo, eu encosto minhas costas no colchão e são nuvens e ondas e anjos e harpas só de mergulhar no fundo do abismo. Lindos anjos lindas ondas.
Nessa última terça-feira de agosto, dia cinza com gosto de sangue, tento cantar para levar até a torre da princesa o que me transpassa agora em pensamento: Eu nunca vou parar de sentir a dor, a dor, a dor eterna de seguir fechando os olhos e me afundando e mergulhando no sem-fundo do abismo que é acompanhar-te. Mas repito: Acompanho-te. Sempre. Dentro.