14 de dezembro de 2009

É claro que era estranho pra mim, eu estava sendo marcada. Não. Acho que nunca houve um estar sendo marcada. Parece que fui marcada no momento exato em que os meus olhos encontraram os teus. Foi de primeira, num baque, entende? Eu não estava preparada. É lógico que eu tomei um susto, por isso estranhei. Eram marcas profundas, tu sabes, tanto quanto as que eu provocara, também de súbito e sem que esperasses. Pouco a pouco, marcávamos uma a outra sem que pudéssemos impedir ou apagar o que fincava rasgava sangrava e brilhava em nossos corpos depois dos primeiros instantes.

Te disse: seu tempo no meu tempo em tempos errados? mas se temos tanto tempo e nos últimos tempos compartilhamos cúmplices os nossos fragmentos, e te disse de verdade isso. Eu queria o tempo para juntá-las, todas essas peças, mas te disse também o quanto tenho medo medo medo de mudanças. você desconfiada você feliz e sorrindo você vermelha e azul ao mesmo tempo dizendo que eu só tinha essas respostas, que eu era o ponto de interrogação no prédio da rua da frente que víamos enquanto ficávamos debruçadas na sacada do teu quarto. como a lua, eu pensei, nós debruçadas ali na sacada como a lua, porque você disse que, quando cheia, a lua vem aqui deixar rastros luminosos pela cama, se esparramando. Talvez tenha sido intencional, mas acreditei, embora eu preferisse o que vinha de dentro sem desconfianças - porque tive muitas quando me dizias para que eu não acreditasse em tudo o que me falavas. Mas fui acreditando.

A verdade é que eu estava por fora, mesmo estando dentro. Me fiz clara? Me fiz clara, me fiz gema, me fiz ovo inteiro. Fiz de tudo com os olhos afastados, esbugalhados, tensos tenebrosos e tementes - a quê? a um deus sem nome, um deus sem maiúsculo, um deus talvez do sentimento mais simples e sublime já sentido em todos os países em todas as praias em todos os casebres montados com madeira ou dentro de um quarto um cubículo um dois por dois metros cúbicos só a cama e o criado-mudo e ali os dois corpos as duas pessoas as várias marcas espalhadas pelo corpo e o sentimento ali ensurdecendo os ouvidos, quase paralizando os músculos, só os olhos esbugalhados e tensos olhando e era clara era gema era ovo era o nascimento também, o sentimento elevando, elevando e o deus em cima regendo, o deus minúsculo da simplicidade e da sublimação.

Você entende o que falo? momentos plásticos? brilhantes feito fotografia nova? A blusinha rosa ao pé da cama, devia ser quase três da manhã de uma daquelas nossas madrugadas e levantastes, acendeste o teu cigarro, contornastes devagar a cama de lençóis limpos e como se os movimentos fossem ensaiados ou como se nenhuma outra pessoa no mundo ficasse melhor nesse exato movimento de tragar o cigarro enquanto as mãos leves ainda se debruçam na sacada, e era madrugada, como eu disse, e estava tudo tão escuro nas ruas e dentro do quarto e em todos os lugares, acho que dessa vez o céu estava feio, cinzento, choroso - pensei nisso mesmo quando o olhei, antes do que fizeste: feio, cinzento, choroso. Mas depois disso não o olhei nesse dia, e tu fostes e depois de tragar o cigarro e colocar as mãos na sacada, tu fostes e te fundistes com as imagens que tenho de mim e que conseqüentemente pensei que tivesses; bem fundo e dentro de mim eu não só pensei que tivesses essas coisas, mas previamente sabia: eu sabia desde sempre. Como se nas minhas marcas houvesse certeza e eu enxergasse também nas tuas marcas algo como confiança, sinceridade, paz nos olhos.

E isso é o que é o mais estranho - ou talvez agora eu pare de dizer estranho e passe a chamá-lo de especial. Vindo do outro mundo? vindo de mundos distintos e distantes e uma só alma? E se for isso: uma só alma? Nunca se sabe. Estou respirando, o que é mais importante. E real. E humano. E vivo. E insistente.

Um comentário:

Unknown disse...

lindo e verdadeiro...sensivel...