26 de agosto de 2009

acompanho-te.

O céu continua escuro. Minhas unhas já estão roídas (ainda é terça-feira), meus cigarros acabaram todos e meus olhos mal conseguem se manter. Não sei se pela ausência do sol ou pela presença maciça das nuvens escuras, sinto-me numa luta para conseguir enxergar. Não é uma terça-feira qualquer, embora, olhando a janela com gotas de orvalho matinais, posso afirmar que terças assim já existiram. Não consigo abrir direito os olhos, mas sinto que existem peculiaridades nessa última terça-feira de agosto. Logo chega setembro, que venha azul pois o cinza de agosto começa a cegar-me.
Grudei os olhos ontem num ponto fixo do asfalto desgastado enquanto esperava o ônibus, aqui mesmo perto de casa. Imaginei teus contornos, recompus teus traços num pedaço qualquer do asfalto pisado, tão pisado e massacrado: quente ainda do atrito com os pneus.
Devo estar delirando. Arrancaram de mim os dentes pela raiz. Ainda sinto gosto de sangue, mas alí, distraida, perdi todos os ônibus que me levariam ao destino desejado, que já
nem lembro qual, se é que desejo algum destino. Alí, em pé e distraída, quando refiz teu rosto e teu corpo, deixei-me horas sem enxergar passantes, esquinas, movimentação; te recriando para mim e só, até que começou a chover. Chovia muito e já era noite; eu gosto de chuva, mas eu não queria que você se molhasse ali no chão de asfalto. Resolvi voltar pra casa. Sou adaptável; não por nascença ou instinto, mas porque se desenvolveu em mim ao longo desses anos a doce arte de fazer da realidade um mundo dotado de todas as minhas possibilidades. Necessito adaptar-me para bem usufruir os raios quentes de sol, as gotas frias da chuva, o vento gélido e quase aterrorizante que chega a beira-mar quando anoitece.
Foi no último sábado que li o que me deixaste em cima da cabeceira, depois de olhar as gotas de orvalho:
Não fui embora completamente. Mantenho-te. Acompanha-me?

o bilhete e a tua ausência, como de costume. Como se dissesse querer prolongar nossa sensibilidade. Como se implorasse disfarçadamente a permanência do elo nunca soldado. Mas onde? pensei em perguntar e tive a certeza de que você responderia: dentro. Acompanha-me dentro, que é exatamente onde estamos, que é exatamente onde podemos estar.
Então fecho os olhos. Você não foi embora completamente. Fecho os olhos e Te recrio para suprir a falta, se é que me entende. E quando olho bem dentro de mim e acho o dentro do fundo dos teus olhos, mergulho e nesse momento exato se abre um abismo entre o conhecido e o intocável e inatingível, embora tão perto, tão perto, e mergulho me afundo me afogo e quantos oceanos nos teus olhares. Continuo, resignada, escondendo nos olhos úmidos o pedido implícito que me fizeste, a resposta óbvia e demasiadamente clara: acompanho-te, acompanho-te, e levo nos olhos ainda o pacto inimaginável das nossas estradas unificadas. Coloquei Radiohead quando cheguei. Bad day, eles dizem. That's not me. Ah, Essa louca insone de coração rasgado vestida com a capa de cansaço e vício e perda e fome de realidade, mas pensando sempre nisso: no mergulho no dentro e nos olhos; alimentada de ilusoes, essa louca. Mergulho mais e mais e mais depois do abismo. Às vezes o mar vira céu e as algas nuvens e as ondas anjos lindos anjos lindas ondas quebrando-se sobre as pedras cristalinas, tudo isso eu vejo. Passo agora dias inteiros num choro calmo, mas controlado. Acompanho. Um pouco de tristeza ainda: nunca compreendi os motivos. Mas sinto plumas me envolvendo, eu encosto minhas costas no colchão e são nuvens e ondas e anjos e harpas só de mergulhar no fundo do abismo. Lindos anjos lindas ondas.
Quando venta muito e faz muito frio e as janelas ficam pipocadas de gotas, eu junto os papeis e os taco na lareira para me manter quente. Eu pego blocos e blocos e anoto frases desconexas, i`m following, i`m following, i`m following you, coisas sobre vísceras e poesia e morte diária e redenção e reencontros - escritos inúteis. Junto nossos pedaços. Seguimo-nos de longe, observamo-nos de camarote, onde a visão é melhor pois o angulo é privilegiado e distante dos outros observadores.
A verdade é que não sei onde estou, onde está você, onde está ninguém. Estive esse tempo inteiro a beira - do abismo, do mergulho, dos olhos e do dentro. Tenho vontade de cantar para que o meu canto alcance as paredes do teu quarto e soe como sinos harpas anjos e sufoque o barulho dos carros e dos caminhões e as conversas paralelas e todas as frequências de rádio AM e FM, que minha voz em sinos e melodia sufoque tudo como o meu choro calmo e controlado.

A noite de sábado foi terrível. Puxei meus cabelos com tanta força que imaginei que acordaria com metade dos fios soltos no travesseiro. Estava tudo escuro, a porta em forma de sanfona estava fechada e apenas um feixe de luz entrava pelo quarto - esquecida a luz da sala acesa apenas para tirar-me o medo de estar sozinha. Eu segurava o bilhete em uma das mãos, o chumaço de cabelos em outra, os olhos fechados buscando, buscando, abrindo-se e vendo o feixe de luz e fechando-se em mares anjos ondas harpas e abismos.
Nessa última terça-feira de agosto, dia cinza com gosto de sangue, tento cantar para levar até a torre da princesa o que me transpassa agora em pensamento: Eu nunca vou parar de sentir a dor, a dor, a dor eterna de seguir fechando os olhos e me afundando e mergulhando no sem-fundo do abismo que é acompanhar-te. Mas repito: Acompanho-te. Sempre. Dentro.


5 comentários:

Giuliana Fernandes disse...

Nossa, viajei aqui rs.
"Grudei os olhos ontem num ponto fixo do asfalto desgastado enquanto esperava o onibus, aqui mesmo perto de casa." Adoro quando
isso acontece, parece mágico porém muito inspirador.
beijos gata, arrasou no post.

Élvio disse...

Miiigs!!! Morri-nasci-morri!
"Nessa ultima terca-feira de agosto, dia cinza com gosto de sangue" Isso é, definitivamente, Rimbaud. Depois te explico pq. Eu sou um paga-pau dos seus textos, pra sempre. E eu vim aqui em estado de urgência do coração. Vim sangrar um pouco, para provar que eu tbm to vivo.

Anônimo disse...

Olá Aline!
muito bom seu blog.. parabéns!
adoro entrar aqui ouvindo Bob Dylan..
hehehe

tudo muito intenso.

Beijos

Unknown disse...

"Estive esse tempo inteiro a beira - do abismo, do mergulho, dos olhos e do dentro."

arrepio.



saudade de você lendo seus textos pra mim.

Alberto da Cruz disse...

Nossa, que texto denso. Adorei sua forma de escrever. Prendeu-me do início ao fim... e olha que eu não tenho muita paciência para ler no computador.
Parabéns pelo blog.

abraços,
Alberto da Cruz