23 de outubro de 2010

A Visita Esperada

Para o Caio F




Peguei o taxi após descer o viaduto. O coração era bomba desligada. Explico: ainda não havia sido programada para explodir, como essas que vemos em filmes de ação. Quieta e poderosa em seu silêncio ameaçador, palpitava em segredo. Mesmo assim, o coração era ainda uma bomba de dar medo em sua quietude – nunca se sabe dos fios que ligam e desligam as possibilidades de destroços. Preferi me medicar para não entrar em desespero.
Antes de pegar o taxi e antes mesmo de descer o viaduto, ainda no hotel onde estou hospedada, me maquiei, troquei umas duas ou três vezes de roupa e me perfumei tanto que na ansiedade (e é na falta de propriedade para nomear o sentimento que assim o denomino) o vidro vermelho francês caiu enloquecendo o ambiente com suas damas da noite no início da manhã. Voltei a esse ponto da história para que prestem atenção aos sinais: era manhã, eu havia acabado de acender o incenso de almíscar e logo que comecei os preparativos para a visita, já havia cheiro de dama da noite por todos os lados.
Peguei o taxi. Vou pro Menino Deus, me disseram que podemos ir pela Getúlio Vargas. Sim, senhora. É perto do Guaíba, não é? Sim, mas depende de que parte do Guaíba tu queres ficar. Não não só pra saber.  
Não estava tão frio como eu gostaria, mas o céu era cinza. Observei um pouco o caminho e, como nunca faço, puxei papo com o motorista:
- Vou visitar um grande amigo.
- Bá, tri bom. Faz tempo que vocês se conhecem?
-Pessoalmente nunca, mas de empatia faz uns cinco...
- Cinco o quê
?
- Cinco anos.
- E como é isso?
- Ah. (…) A ge
nte não precisa olhar nos olhos para sabermos que algumas pessoas existem e dividem o existir conosco.
- Filosofia... mas acredito, existe de tudo.
Viramos a esquerda. Vi um caminho quase que colonial feito de palmeiras. As casas eram bem conservadas e bonitas. Pensei que deveria ser bom morar ali onde Deus ainda é menino, mesmo que eu diga ainda que Deus sabe-se-lá-se.
- Está feliz, então, conhecendo o amigo há tanto tempo e só agora... ?
- Tô. Tô sim. No momento tenho medo de explodir, mas esta tudo sob controle. A felicidade segura o descontrole das emoções.

          Três ou quatro perguntas sobre política que respondi no automático porque não estava nem aí para política, partido, relação alguma. Apenas dividi que ia visitar um amigo. Em dez minutos chegamos.
Não existiu tempo.
          Estou na rua Oscar Bitencourt em setenta e cinco. Ainda não nasci, mas venho projetada do futuro para encontrar-te, amigo, e ao menos enquanto ainda estás aqui, abraçar um pouco teu corpo magro e dizer-te palavras bontas. Sei que conheces bem também. Tomaremos um café que eu mesma irei passar. Trouxe bolinhos de chuva, dois maços de cigarros, vinho e camisinhas, que era o que não poderias ter deixado de usar desde sessenta e cinco, menino bonito rebelde. Não digo por gravidezes inesperadas pois disso cuidastes ou cuidastes alguém por ti, a força da atração, coisas, coisas que cuidaram para que não deixasse nada além do que brotou com consciência. Menino único.   
          Toco a campainha. Há dentro de mim uma vaga certeza de que a casa está vazia. Pássaros cantam, o que é absolutamente normal. Flores dançam, excêntricas com a maestria do vento, o que são pequenos presentes divinos de um céu que nem azul é. O blues não chegou por aqui de manhã. Onde estásToco novamente a campainha. Deve estar passeando pelas ruas do centro com seus brincos e lenços. Vim de tão longe, amigo... queria eu que chegasses aqui do nada e me abraçasses pelas costas. Era mesmo para ter acontecido desencontros, desenganos, desamores.
          Venta bastante agora em dois mil e dez. Ele chegou. Não abriu as portas da casa porque já não pode. Não que esteja velho e incapaz de mover-se, mas sua casa não é mais sua, me conta. Está a venda. Me pede com som, cheiro e toque na pele para que eu a compre, assim poderemos tomar os cafés – garante que será possível as duas xícaras na mesa da varandinha do andar de cima, como imaginei. O chamo de bruxo por ler meus pensamentos descaradamente. Ele sorri e insiste que eu compre o sobrado. Não tenho dinheiro, eu digo, e aos poucos vou ficando triste. Não posso comprá-la, não posso comprá-la... Ele pede que eu anote o telefone da imobiliária.
          - Não tenho esse dinheiro, insisto.
          -Alugue-a. Passe aqui uma, duas semanas comigo.
Meu amigo está morto e mudarei meu nome se eu morrer também sem tomar os cafés no frio interior do sobrado como prometemos.


          - Ouvindo Bethânia para sofrermos em beleza, disse.





          - Uma semana?, perguntei. Vou ligar para a imobiliária.





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Meu obrigada a Andrea, do Andrea TPM, que ajudou na realização de um desejo antigo e a @ClarahAverbuck que indicou a @amandacosmos que também sabia o endereço da antiga casa do Caio.



4 comentários:

Andréa Beheregaray disse...

Querida, fico emocionada de ler. Sei como te sentes, estive lá, entrei, me emocionei, é lindo.

Fico feliz se, de alguma forma, te ajudei a realizar um sonho assim, tão doce.

Que seja doce, então.

Um beijo.

gpichinine disse...

Sensacional.

gpichinine disse...

Eu sinto orgulho de te conhecer e de, um dia, mesmo que longínquo, já ter sido amigo íntimo seu, a meu parecer, pelo menos. Digo isso após constatar o já antes constatado, talvez a mais constatável coisa de todas: seu talento não cabe em você. Seus vôos serão os mais altos que quiseres no sucesso e mais baixos que precisares na doce tristeza. "A Visita Esperada" é um pingo de todo o universo que habita em você.

Anônimo disse...

Aline :D
Vim aqui conferir o blog também.
Gostei muito. Tanto do visual quanto, claro, da escrita. Que curti ler.

Bjs