14 de junho de 2009

em mim há ainda um céu maior

Porque para que aquela reunião de palavras todas fosse dita temerosamente e tremente, foram necessárias muitas conversas internas, muitos diálogos, muitos monólogos e quicá fofoquinhas, conversinhas, conselhos seus para ela mesma. Mesmo que não fosse calmo o jeito que dizia, que colocava os pensamentos e as idéias, aquelas coisas loucas que ela tinha, mesmo que colocasse assim bagunçado e embaralhado, era um grande presente que conseguisse mesmo dizer e continuar até que tudo tivesse sido dito, embora sempre falte alguma coisa. E tudo assim, puf, se perdeu no ar. Bolhas de sabão coloridas, lindas!, altas e intocáveis, que se estouram sozinhas e deixam apenas um cheiro bom no aposento que estava sendo abandonado. Afinal, ia-se embora porque o dia já chegara quase ao fim.

Dessa vez não vou olhar. Não vou levantar a sobrancelha direita mostrando que dentro de mim existem aqueles pensamentos perigosos. Não vou. Não vou esboçar o sorriso de pena de mim, um sorriso fechado como se fosse o sinal de que entendo bem tudo o que se passa; que dessa vez estou perdida. Porque existem coisas que não se dizem duas vezes, mesmo que essa coisa palpite a todo instante dentro do organismo, entranhada no corpo e na mente. Passou a oportunidade, passou o momento e não haverá outro ensejo em que eu seja capaz de dizer as verdades da minha alma, eu não teria coragem, porque é preciso coragem para a nudez clara da exposição dos meus mais delicados pensamentos - e cruéis, porque se dou de mim tanto, o que me sobra além do vazio? e, claro, da efemera, sempre efemera, felicidade de conseguir me expor, de arriscar, de mostrar-lhes tudo tudo, de pensar que, talvez, em mim 'inda haja sopro de vida, esperanças, impulsos. E o momento ensaiado, as falas decoradas... ralo. Ralo. É lá que estão as combinações de palavras que foram ditas vezes e vezes para o espelho. Lá, misturadas a cabelos, sujeiras, ratos. Lá estão minhas melhores palavras. A culpa é minha, de certo, que não soube - nunca sei de nada - calar-me quando foi preciso e não soube falar quando era necessário. A culpa é minha que despejei palavras enquanto sonhavas acordada.

Acende um cigarro; outro. Se despede sem olhar até que o ônibus chegue a esquina, aí olha, encontra o olhar, não consegue nunca cumprir a sina, os desejos, acaba sempre por se trair. Auto-sabotadora, é o que é. Anda perdida num bairro quase desconhecido. Só veio aqui duas ou três vezes, o que não fora suficiente para que decorasse as ruelas, os bares, as vestimentas dos transeuntes. Inerte. Anda, anda, meio atrasada e sem tempo, embora não saiba para quê. Para quê?, pensa. Para que possa fugir de uma mão imaginária gigante que a degola, uma mão-vento que não a deixa respirar. Degola, sim, e quase perde o ar. Apnéia. Fugindo, lembra-se que talvez uma praia no caminho de casa, uma praia silenciosa e vazia como a visitada no último fim de semana. últimos sopros e suspiros. É melhor que se vá, que ande mesmo sempre correndo. Como sempre, há de convir, como sempre sozinha embora entrelaçe as mãos às mãos de outrem.

Tenho a ousadia dos loucos, de deixar-me sentar quieta num canto, os pensamentos voando quase incomunicáveis. Deixar-me sentar numa pedra, pedra sobre pedra, bem pertinho do mar nessa praia bonita. Simples, solitária: bonita. E fitar o imenso azul do céu e suas imensas nuvens decoradas. É quase noite, quase escurece. Ousadia dos loucos: fitar assim as nuances que se modificam. E se penso parada deitada olhando esse simulacro de liberdade, essa redoma ilusoria de cor cativante, essa prisão que chamamos de céu - porque não é possível atravessá-lo, porque não vai ser possível nunca tocar as nuvens com os meus dedos - se olho esse céu inteiro, cheio de alegria e, agora, quase dor - porque as nuvens se dissipam, se fundem, perdem-se-; se olho tudo isso e penso que talvez não existam saídas, é porque também eu sou cadeia. também eu sou prisioneira. (e fim, é o que vejo. e entre as grades as cores são mais belas)
As nuvens brancas e amarelas e róseas; começa a doer e o céu cinzento mostra sua face. Começa tímido, cinza claro, depois se impõe em um grafite, marinho, o negrume que prende e engole os olhos, os meus olhos. E se penso parada deitada olhando as pequenas estrelas que surgem, que fingem vida mesmo depois da morte, se olho tudo isso e penso, imagino que eu tenha forças ainda. Devo ter forças para achar em mim alguma solução, se é que existe solução para os meus pensamentos perigosos. Que meus olhos captem os contornos do céu, mas em mim há ainda um céu maior. Em mim cabe tudo o que vejo, tudo o que penso, tudo o que sinto; eu só preciso de força.
Anoitece. Anoitece e caminha vagamente pela praia, conchas e mais conchas de desejos, de dores, amores estraçalhados, dúvidas-sempre essas dúvidas-, amores, amores, amores. Vai embora do seu lugar, do seu refúgio e pensa quem sabe em dizer mais uma vez, quem sabe em continuar com essas perigosas vontades de mostrar-se e expor de si ao máximo. Porque não há regra, as coisas podem ser ditas quantas vezes forem necessárias. Mesmo que doa, mesmo que dê demais, mesmo que sobre o vazio inerente. Um dia algo preenche, um dia chega o preenchimento; é melhor que deixar que se acumulem as mágoas e as esperanças presas dentro da pele.

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