26 de maio de 2009

a morte diária

Sangra tanto saber demais. Sangra tanto agora que já não diferencio essa colcha, que era branca, da colcha vermelha que tenho no armário. Sangra e tudo é forte e intenso e preciso. Sangra a alma em feridas que serão cicatrizes. Em breve, não sangrará mais durante umas vinte e quatro horas. É sempre assim quando me dou conta do vazio que é estar em mim. Chego em casa todos os dias na esperança de não ser esmagada pelas horas enquanto espero, sentada no sofá, cigarro entre os lábios, litros e litros de água - porque eu preciso repor, porque eu sangro, porque eu tenho sede - e olhando, com os olhos fechados, a cena que agora se instala cruelmente no consciente.
Como se eu olhasse uma fotografia: eu, ali, no canto do sofá, soltando uma fumaça expessa draconiana. Sempre acontece quando estou só: me afundo nesses tentadores delírios, san-gran-do; como se o pensamento fosse um pássaro e a mente um grande céu azul. E, de repente - porque eu nunca prevejo quando esses ataques vão se apoderar de mim-, o céu se torna uma grande boca com dentes afiados - não mais azul, meio opaco, quase uma boca cinza escuro-, nuvens dentes, um espaço ilimitado de liberdade, mas cheio de riscos e perigos. Eu, instintivamente, deixo que o pássaro voe ininterruptamente entre os dentes, as cáries, a saliva grossa e pesada.
Às vezes o céu vira campo de batalha e o pássaro não passa de um soldado em meio a tantos outros. Talvez um pouco diferente: um soldado heróico, desses que correm, atiram, se escondem; se safam, diremos assim. Lutam desesperadamente pela vida sem saber o que fazer com ela depois. E sangram, no final, até a morte. Sempre desperto antes da morte do pássaro, do soldado e de tudo o que sou quando fecho os olhos. Quando a realidade volta, a crua e cruel realidade!, quando consigo diferenciar o barulho do ventilador do barulho dos vizinhos, da televisão, dos móveis no andar de cima, da vida; ainda há sangue jorrando. Como uma fênix, conseguindo se manter viva depois de tanta perda, depois de virar pó, gosma, restos, poeira, que seja, não importa. Sempre voltando a tornar-se o que era antes da pequena morte. Diariamente, a morte na espreita, esperando.
Sangram tanto a pele cortada e as feridas abertas. Sentindo a vida sobre mim, fora dos ataques imaginativos, levanto e pego um pano branco a fim de limpar a sujeira. O sangue quase estanca e o tecido se regenera calmamente. Em breve, não haverá mais dor, somente baldes e baldes de mágoas vermelhas. Ainda tenho a esperança de que essa qualidade questionadora dos meus momentos não me assalte mais. Vã esperança. Amanhã, depois e depois de manhã e depois e depois no futuro sempre assim a vida o sangue a dor
a morte diária.

25 de maio de 2009

como isso acontece?

Como pode isso de duas vidas não se cruzarem mais? os olhos não se encontrarem? como pode uma pele não se desgarrar dos ossos pra ir junto, como um instinto, atrás da outra pele (que era uma só, era o limite dos dois...aquelas carnes que pareciam impedir a união completa)? como isso acontece?
Você tem noção da melhor sensação do mundo? Quando o orgulho ultrapassa o controle, o coração infla e os movimentos são menos mecânicos? Quando você percebe que passou, que agora está imune. Então eu estava lá toda segura de mim, toda superada, agora sim, estou com outros, estou bem, estou melhor, esses pensamentos, toda confiança, posso dizer. Mesmo que um pouco insegura por dentro, o meu corpo fazia entender que eu estava bem. Assim: simples. Simplesmente bem, com os meus projetos e meus sonhos que ela tanto sabia. E eu levanto daquela mesa que era uma das nossas mesas, que são ocupadas por outros e outros que eu nem conheço, e eu sento ali ultimamente com desconhecidos, e agora também, já que você me desconheceu. Aí dessa mesma mesa que eu tanto gostava, eu levanto. Vou embora, digo, resolver algumas coisas, encontrar algumas pessoas. Mesmo que eu não tenha nada mais a fazer, eu não posso ficar aqui. Vou fazer qualquer coisa que não seja ficar olhando pra essa sua carinha que me dá nojo. Eu que tinha olhos iluminados que só olhavam você, com aquele sorriso de orgulho estampado, agora eu sei, sua Louca. Louca, louca. eu tenho pena de você. Eu sei que você vai acabar sentada na sua casa vazia com umas três ou quatro garrafas de vodka vazias e os cinzeiros cheios e os pacotes de cigarros também vazios e você vazia e a vida vazia e o tédio, o desespero e a solidão eterna, como você sonhou. Eu sei dos seus medos agora, vejo-os todos com aquela pitada de pena. Por um ou dois segundos eu penso que eu poderia salvar você, mostrar o meu mundo cheio de cores, mostrar a você algumas flores, umas exórias, flores bobinhas, avencas, bromélias, margaridas. E no terceiro segundo, a balançada da cabeça pra expulsar essas idéias nostálgicas de dentro de mim. Sua louca, agora eu entendo tudo por detrás dos seus olhos doentes.

19 de maio de 2009

Os meus olhos cerrados cravados na rachadura da parede, o pensamento trabalhando como âncora, me levando ao passado das ondas, os baús dos navios afundados que tanto ouro e recordações escondem entre o azul dos meus mares. É isso, penso, é isso. Voltamos ao estágio utópico de início de relação. Me veio a lembrança exata, talvez mais a imagem que os sons, talvez mais a luminosidade que o cheiro, mas vinha quase completa, a lembrança, com um quê de saudades ou de medo ou de sei lá o que, como se fosse um deja vu, a lembrança de quando eu mergulhei de cabeça mesmo sabendo que não era pra ser assim tão logo, que talvez fosse precipitação. Um deja vù. era a cena que eu vivia agora, então os pensamentos lá distantes quando eu me perdia enlouquecidamente em amores por aí, em um amor só, não sei, em um desses momentos em que eu, quase desesperançosa, me entregava aos braços de quem eu tinha elegido. E digo mais, essa cena de agora só é importante porque é escassa, porque só aconteceram coisas assim comigo umas duas vezes em toda a minha longa vida de esperas. Naqueles tempos me apaixonei por Roberto e disse isso uns dois dias depois de tê-lo conhecido. E ele me perguntou se eu acreditava em amor a primeira vista. Amor a primeira vista? -eu disse - eu acredito é em amor. Depois disso ele não falou mais nada, me abraçava como se quisesse dizer oh pobre menina. Só porque eu acredito em amor.
E agora estamos aqui, essa outra pessoa ocupando o lugar que foi do Roberto um dia. Essa pessoa num lugar que eu escolhi, com um lençol que eu escolhi, a pessoa que eu escolhi, vamos dizer assim. Como se eu tivesse escolhas...
Era um sábado em que eu poderia aceitar um pedido de casamento. E uma das piores coisas na vida é pensar em aceitar um pedido de casamento de alguém que não vai pedir a sua mão. Diabos de cupidos. Culpados! Tento me lembrar sobre o que eu falava com o Roberto nessas horas. (pra ver se eu consigo dizer alguma coisa e tirar os olhos da rachadura da parede. Maior que no mês passado, reparo. Antes que ele perceba os devaneios em que me encontro)
Eu só lembro qual era a sensação que eu tinha quando via mais amor em meus olhos, refletidos no dele, do que na própria primeira imagem, que eram os olhos mais lindos do mundo pra mim naqueles dias. Uma espécie de nó lá nas entranhas que se abriria numa ferida corroendo tudo, repuxando os músculos, os órgãos, todas as minúsculas células se abrindo num desabrochar até chegar a pele. Ou um nó na garganta quase sufocante de quando se está desesperadamente ansioso por um grito e o máximo que se consegue fazer é um simples murmurinho, uma baforada de ar quente que tenta de qualquer maneira ter algum som, um formato, uma fumaça leve pintada de cinza. Em vão. Inércia. Querer continuar no silêncio até que se arrumem todos os pensamentos e os sentimentos e as idéias loucas e a vontade de ficar aqui para sempre. Exatamente esse nó na garganta, esse nó nas entranhas. Isso é o que sinto agora: a parte de dentro toda explodindo enquanto a parte de fora mantém um rosto calmo, serenamente confiante e os olhos semi-cerrados.